Futebol internacional

Depois de 572 dias sem treinador, Brasil anuncia dois selecionadores: Fernando Diniz, o interino, e Carlo Ancelotti, o arquiteto do hexa

A solução inusitada foi anunciada na terça-feira à noite. Fernando Diniz, que vai acumular o cargo com o de treinador do Fluminense, assinou contrato com a CBF por um ano. Carlo Ancelotti vai aterrar no Rio de Janeiro em junho de 2024, quando deixa de estar ligado ao Real Madrid. “É um sonho que estou realizando”, confessou Diniz

David Ramos/Getty

É um negócio complicado. O Brasil estava sem selecionador desde 9 de dezembro, quando perdeu dolorosamente nos penáltis contra a Croácia nos ‘quartos’ do Campeonato do Mundo. O hexa continua a ser uma distante miragem. Tite anunciara há muito que seria o adeus aí e ele não é “homem de duas palavras”, não senhor. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) ficou então de arranjar um treinador.

Podcasts, programas televisivos e alguns jornalistas peroraram então sobre Pep Guardiola. Os senhores treinadores do Brasileirão iam sendo tidos em conta. Jorge Jesus e Abel Ferreira estiveram supostamente na lista que talvez não fosse assim tão curta no início. Também surgiu um namoro com Carlo Ancelotti, que parecia improvável. Não tanto porque não encaixaria, pois ele é mais brasileiro na alma do que muitos brasileiros, mas porque estava ligado ao Real Madrid. E o tempo foi passando.

Uma seleção daquele tamanho, vitoriosa em cinco Mundiais (1958, 1962, 1970, 1994, 2002), sem treinador podia soar a amadorismo, como acusaram alguns. Ednaldo Rodrigues, o presidente da CBF, tinha um plano. As notícias no Brasil e em Espanha iam ganhando espessura quanto ao interesse daquela entidade em Carletto, o homem normal do Real Madrid que tanto conquistou pela Europa fora. As perguntas iam enfadando Florentino Pérez, o presidente do Real, e até o treinador, que não podia falar taxativamente. Como acompanhamento do prato principal, a imprensa e analistas iam esboçando opções mais térreas, nomeadamente os treinadores que vão pintando o Brasileirão semanalmente.

A trama adensou-se. Nos mais recentes particulares, um deles em Lisboa, o interino foi Ramon Menezes, o selecionador sub-20. O resultado contra o Senegal (2-4), em Alvalade, soou os alarmes. Não é que tenha sido preocupante, mas agudizava o impasse, amargurava ainda mais aquele momento de incerteza. E Ancelotti virou quase certeza, ainda que a versão que era suspirada indicava que ele cumpriria o contrato com o Real Madrid até ao fim e depois, sim, pegaria em futebolistas como Neymar para tentar fazer o que outrora Pelé, Garrincha, Didi, Romário e Ronaldo Fenómeno fizeram. A maior dúvida estaria sempre no interino. Seria David Ancelotti, o filho e atual adjunto?

Na noite de terça-feira houve finalmente um avanço importante nesta novela. Ednaldo Rodrigues confirmou que Carlo Ancelotti será o treinador a partir de junho de 2024, altura em que fica desvinculado do Real Madrid e que assim fará o ciclo até ao Campeonato do Mundo de 2026.

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O selecionador interino, uma opção inusitada nos tempos que correm, também foi anunciado. Trata-se de Fernando Diniz, o treinador do Fluminense, o sexto classificado do Brasileiro. O técnico, nascido há 49 anos em Minas Gerais, vai dividir o tempo entre a nação brasileira e o clube das Laranjeiras. O contrato assinado, na sede do organismo que rege o futebol brasileiro, na Barra da Tijuca, prevê uma ligação de um ano com a CBF. Ednaldo Rodrigues garantiu que Diniz vai atuar com “toda a autonomia”.

O debate estalou imediatamente nas redes sociais, televisões e, com certeza, nas rádios do país. “A seleção brasileira será comandada por dois treinadores empregados, que vão ‘dividir’ a camisa que mais venceu Copas do Mundo com seus clubes. É o fundo do poço do amadorismo e da várzea aqui”, defendeu Leonardo Miranda, jornalista do “Globo Esporte”, no Twitter. Muitos duvidam desta solução. Em 2023 já se sabe que o trabalho de um treinador é super complexo e exaustivo. Será possível cumprir dois?

“Há muitos treinadores bons no Brasil”, explicou-se Ednaldo Rodrigues. “E Diniz foi por conta de trabalho que entendi que era inovador, a partir do momento em que ele fez trabalho no Audax”, continuou. O dirigente elogiou a metodologia e as ideias do treinador do Fluminense, tirando o chapéu à resistência a mudar, embora sinalize algumas variantes. “A proposta do jogo dele é quase parecida também com a do treinador que assumirá a partir da Copa América, o Ancelotti. Tem quase o mesmo tipo de proposta de jogo.”

É refrescante testemunhar um cartola a aventurar-se pela tática e identidade no relvado, explicando decisões assente nesse pressuposto. Foi essa também uma das mais quentes conversas que brotaram depois do anúncio. Pensam parecido, ou não? Os defensores e amantes do futebol relacional e ataque funcional estão entusiasmados, dizem que sim. Ou seja, são avessos à ditadura da posição, não há tantas regras como no ‘jogo de posição’, nas ideias de Pep Guardiola e seus discípulos. Com Diniz e Ancelotti, o jogador movimenta-se com mais liberdade supostamente. É por isso que estarão ambos mais perto da essência do futebol brasileiro.

Os futebolistas Vinicius Jr., Rodrygo e Éder Militão, dos elencos de Real Madrid e seleção, terão certamente ajudado nas agruras do recrutamento, validando ou dando opinião. Por outro lado, Fernando Diniz viveu do encanto que o seu futebol provocou em ex-futebolistas e em atletas-ainda-monstros como Neymar, que publicamente defenderam a ideia que agora foi confirmada, ainda que temporariamente. Nota: há quem desconfie que Carlo Ancelotti esteja fechado a 100%. E se não estiver? E se a era Fernando Diniz for brilhante até lá? É um negócio complicado que fica fácil, não é?

Em setembro, o agora selecionador brasileiro deu uma entrevista à Tribuna Expresso explicando quem é, porque pensa assim e o que anda fazendo no futebol. “Não teria prazer nenhum em treinar uma equipa simplesmente para vencer, jogando de uma maneira embrutecida”, disse então. Esse tipo de declaração é uma das críticas que os ferozes resultadistas lhe fazem, pois ele valoriza tanto a beleza e a forma de jogar como as vitórias.

Fernando Diniz somou passagens por Audax, Santos, Vasco e São Paulo, onde não esteve assim tão longe de conquistar o título nacional. O ex-futebolista, que viveu inspirado pelo Brasil de Telê Santana (1982, 1986), é habitualmente escutado a bater no sistema que envolve o futebol profissional, pois defende que este mastiga e deita fora os jovens, sem os ajudar e tratando-os como mercadoria.

“Estou muito feliz com o convite e com a convocação, certamente vou dar o meu melhor para a CBF e para o futebol brasileiro”, garantiu na terça-feira à noite, na sede daquele organismo. “É um sonho que estou realizando ao estar ao lado de grandes jogadores, alguns destes atletas foram meus jogadores quando mais jovens (vêm-me à cabeça Bruno Guimarães e Antony). Fui adversário de alguns e outros tantos acabei admirando. Então, para mim, vai ser um motivo de muito orgulho poder participar e vou procurar ajudar de todas as formas possíveis.”

E concluiu: “O meu objeto de estudo e o meu prazer no futebol é ajudar o jogador a colocar para fora a sua inventividade, a sua criatividade e que ele seja feliz enquanto joga futebol. Isso eu fiz durante a minha carreira inteira e foi o que me trouxe até aqui e o que eu vou procurar fazer pelos jogadores”.