Houve dois dias, em Florença, em que as pessoas perderam a cabeça. Passaram-se, mesmo. Viram-se milhares a cercarem o estádio Artemio Franchi e a ficarem por lá durante horas. Estavam furiosas, berravam, espumavam de raiva. O presidente da Fiorentina, nesse dia, recusou-se a abandonar o gabinete no qual se trancou. Os protestos duraram tanto que se espalharam pela cidade, onde uns 50 adeptos, feitas as contas, resultaram feridos entre os protestos. Do centro de Florença, a gente furiosa seguiu para Coverciano, oito quilómetros distante do centro da cidade, onde a seleção italiana estava em estágio. Os protestos continuaram por aí.
Pessoas a não dormirem em casa, polícia à mistura, muitas agressões, gritos e confusão nas ruas, demasiadas cabeças perdidas. Era tudo por causa de um homem.
Roberto Baggio.
Porque nesse verão houve uma noite, já com a época de clubes a ir para a cama e a das seleções, que iam para um Mundial, a despertar, que a gente de Florença não esperava. Souberam que a Fiorentina vendera este homem à Juventus, semanas depois dele, e deles, perderem a final da Taça UEFA contra a equipa de Turim. E ele, que era adorado e os adorava, estava a ir-se embora ao fim de cinco temporadas. Isto foi em 1990 e ele, ao ser apresentado na Juve, não pôs ao pescoço o cachecol que lhe deram, para jornalista ver e fotografar. Os adeptos não gostaram.
Todos sabiam que, na época seguinte, o miúdo e os seus 23 anos teriam de regressar a Florença. Quando o fizeram, um dos apitos do árbitro deu um penálti contra a Fiorentina e quando a bola pára ali, é o melhor pé que a bate. Era o de Roberto Baggio. Mas ele, sabendo onde estava, recusou-se, e De Agostini, o tipo que o bateu, falhou. A Juventus acabou por perder 1-0 e Baggio por ser substituído a meio. A meio caminho entre o relvado e o banco, alguém na bancada lhe atirou um cachecol da Fiorentina, que ele apanhou e envolveu no pescoço. Mais adeptos a espumarem, os brancos e pretos em vez dos roxos.
E se havia personagem em Itália a quem, com o tempo, isto se perdoava, era Roberto Baggio.
Ele nasceu num tempo em que Itália era o centro do futebol e uma terra em que se olhava a táticas, a defender, a correr e a ter mais músculo e cabeça do que outra coisa. A era do catenaccio, do apogeu de uma crença na capacidade de o futebol feio, aborrecido e contido também ganhar jogos.
Nesse tempo, ele jogou à bola, correu apenas para a frente, fintou pessoas, pernas, carrinhos e faltas e recusou-se a marcar golos - foram mais de 300 - sem antes fazer algo de bonito pelo meio. Ele estreou-se a marcar contra o Nápoles de Maradona, de livre, depois de ser operado três vezes ao mesmo joelho antes de fazer 18 anos - o que o fez duvidar do futebol e dele próprio, que não mais se livrou das dores até aos 37, idade até à qual se aventurou.
A aventura dele começou em Caldogno, no norte de Itália, onde nasceu. Fica perto de Vicenza, clube que o foi buscar em miúdo e o vendeu, em adolescente, à Fiorentina. Aos 17 anos, um rapazote italiano vindo de um clube acabado de subir à segunda divisão custava 1.7 milhões de euros, quando, na altura, o génio mais caro do mundo era o de Diego Maradona, por quem o Nápoles pagara 5.8 milhões ao Barcelona, um ano antes.
Ali havia gato.
Ou um leopardo, pela forma como na Fiorentina, primeiro, e na Juventus, no AC Milan, no Bolonha, no Inter de Milão e no Brescia, por último, ele ziguezagueava por entre adversários. Parecia fácil. E era-o, para Baggio. Mesmo que as três operações ao joelho o fizessem dizer que tinha uma perna e meia. Ou que, ao longo da carreira, se apenas tivesse jogado quando não sentia dores, teria estado em duas ou três partidas por época. Ele era alérgico à maioria dos medicamentos anestésicos e, face à dor e à descrença que sentia, cedo se virou para o budismo.
Baggio era tímido, introspectivo e conhecido por falar pouco, quase não dar entrevistas. As coisas aconteciam à maneira dele, que era especial, como o brinco na orelha e o rabo de cavalo que deixou crescer e lhe dava um visual bizarro para a época - assim pegou a alcunha, “Il Codino d’Oro”. Baggio, que trocou de grandes clubes em Itália como quem muda de t-shirt, caía no goto dos adeptos, fiéis adoradores das fintas, dos dribles a circundarem guarda-redes, dos raides que ele fazia sozinho e das soluções que arranjava para quando estava cercado. “A coisa mais bonita da minha carreira é o sentimento que as pessoas têm por mim”, chegou a dizer.
O problema que Roberto Baggio tinha era com os treinadores.
Ele nasceu dez anos antes do tempo que abriu os braços aos inventores que não podem ser domados. Sven-Goran Eriksson deixou-o ser livre na Fiorentina, mas, na Juventus, os golos que marcava deixavam de servir de desculpa quando as lesões começaram a aparecer e Giovanni Trapattoni ter um motivo para não o utilizar. Quando Marcelo Lippi chegou, quis tornar a Juve “menos dependente em Baggio”. Propôs-lhe uma redução de ordenado, teve a resposta retórica que procurava e Roberto saiu para o AC Milan. Era lá que estava o treinador com quem mais às turras andou.
Arrigo Sacchi era o homem que tirara Baggio durante a primeira parte do jogo inaugural da Itália, no Mundial de 1994, quando Gianluca Pagliuca, o guarda-redes, foi expulso. O jogador muito bom e o melhor de uma seleção razoável era o primeiro a ser preterido. “Ma quello e matto!” - “O homem está louco!”, disse o avançado, enquanto saía de campo. Mas, depois, seria ele a marcar cinco golos e a ser quem mais puxou a corda que arrastou os italianos até à final. Lá chegados, e depois de Baresi e Massaro falharem, Baggio não acertou o último penálti que entregou o Mundial ao Brasil de Romário e Bebeto.
Um pontapé que deu de rastos e fez a bola passar por cima da barra ainda é a imagem que mais se cola à carreira de Roberto Baggio. E ele falou sobre ela na autobiografia que escreveu, em 2002, a dois anos de parar de jogar:
“Quanto ao penálti, não me quero gabar, mas só falhei um par deles na minha carreira. E falhei-os porque o guarda-redes defendeu, não porque rematei ao lado. Não há uma explicação fácil sobre o que se passou em Pasadena [o Mundial de 1994 jogou-se nos EUA]. Quando fui bater estava bastante lúcido, tanto quanto era possível naquela tipo de situação. Sabia que o Taffarel mergulhava sempre, por isso decidi rematar a bola ao meio, a meia altura, para que ele não lhe conseguisse chegar com os pés. Foi uma decisão inteligente, porque o Taffarel caiu para a esquerda, e nunca teria apanhado o remate que planeei.
Infelizmente, e não sei como, a bola foi três metros para cima e voou sobre a barra. Quanto a bater o penálti, eu estava de rastos, mas era o marcador de penáltis da equipa. Nunca fugi às minhas responsabilidade. Só falham os que têm coragem de bater um penálti. Nessa vez, falhei. Ponto final. E afetou-me durante anos. Foi o pior momento da minha carreira, ainda sonho com ele. O que por vezes é esquecido é que, se tivesse marcado, o Brasil podia vencer no último penálti, porque o Baresi e o Massaro já tinham falhado. Faz parte do jogo. Tiveram que escolher uma imagem da final e escolheram o meu erro. Quiseram um cordeiro para matar e escolheram-me, esquecendo-se que, sem mim, nunca teriam chegado à final.”
Ele brilhou e falhou com a seleção em 1994, como já brilhara e falhara em 1990. No Mundial que pôs a Itália a ser anfitriã, Baggio começou os dois primeiros encontros no banco, até Azeglio Vicini, o selecionador, perceber que ele era a solução. Marcou o melhor golo do torneio a brincar com a Checoslováquia, tornou-se no melhor da equipa, mas começa a meia-final contra a Argentina de Maradona (perdida nos penáltis) no banco. O treinador olhou para ele e achou-o cansado. "Mas eu tinha 23 anos. Tinha dado tudo para começar esse jogo, até tinha comido relva", confessaria Baggio.
Entre esses Campeonatos do Mundo, a FIFA elevou-o a melhor do mundo, em 1993, quando venceu a Série A e a Taça UEFA com a Juventus. Depois de Trapattoni, de Lippi, de Fabio Capello e de Sacchi, ainda ouviu Óscar Tabarez dizer, sobre ele, que "não há lugar para os poetas no futebol".
E soube que, mesmo com o AC Milan e o Parma com o preto do negócio no branco do papel, um jovem treinador chamado Carlo Ancelotti não o queria na equipa, por não ser um avançado a sério - Platini classificava Baggio de "um nove e meio" - e por temer a sua atitudade. "Era novo e não tive coragem em arriscar em algo que não conhecia. Perdi 22 golos", reconheceria, mais tarde, Ancelotti.
Foi o número de bolas que Roberto Baggio remate para a baliza com o Bolonha, onde brilhou o suficiente para ir ao seu terceiro Mundial, em 1998. Jogou de menos para o que ainda era e o que a equipa fazia com Alessandro Del Piero, com quem Cesare Maldini, o selecionador, achava que Baggio era incompatível. O primeiro, que estava fora de forma, jogou mais tempo que o segundo, que marcou dois golos, mas caiu com a equipa nos oitavos-de-final. Seria a última competição internacional para o italiano.
Roberto Baggio teve direito a três Mundiais, mas nenhum Europeu - em 1988 ainda não se estreara; em 1992, os italianos não chegaram lá; em 1996, o seleccionador era Arrigo Sacchi, que não o convocou; e em 2000 e 2004, a idade que já tinha serviu de desculpa para quem mandava não o juntar aos Tottis, Del Pieros e Vieris. Sempre foi difícil os treinadores irem à bola com Roberto Baggio e ele arranjou uma teoria para o justificar:
"Muitas vezes penso sobre o porquê deles não me considerarem, mas nunca encontrei uma resposta. Talvez tivessem um pouco de inveja, como toda a gente me adorava, até os adeptos rivais. Estaria eu a roubar o espetáculo, a negar-lhes o papel de protagonismo que tão desesperadamente queriam para eles? O futebol moderno está crescentemente dominado por treinadores, pelo narcicismo com o qual se colocam acima da equipa e dos treinadores."
Deu ao Brescia os últimos quatro anos que tinha de futebol. O treinador, Carlo Mazzone, deixava-o à vontade e com liberdade para liderar uma equipa aflita, que chegou a ter Pep Guardiola e Andrea Pirlo ao lado de Baggio. Com peso e cabelos brancos a mais, ele continuou a marcar mais de 10 golos por época, a ser mágico à maneira dele. Os italianos quiseram-no no Mundial da Coreia e do Japão, os rumores disseram que os jogadores da seleção não o quiseram lá.
Em 2004, na sua última época e cinco anos após a última chamada, Trapattoni chamou-o à seleção para que jogasse contra a Espanha e se despedisse de toda a gente, aos 37 anos. As bancadas do estádio do Génova, atoladas de gente, aplaudiram-no durante três minutos seguidos, ao ser substituído no derradeiro dos 57 jogos que fez com a seleção. Poucos, para tantos golos (27) e talento que tinha dentro dele.
Nunca o veremos a ser treinador, a comentar na televisão ou a ser agente de futebol. Saído do futebol, trabalhou com as Nações Unidas no Haiti e no Myanmar. Roberto Baggio continua a ser budista, a não gostar de dar nas vistas, e passa muito do seu tempo na América do Sul, onde tem uma quinta, na Argentina.
É por tudo isto que as pessoas continuam a gostar dele. Todas, menos os treinadores.