Talvez Megan Rapinoe não precisasse daquele passe longo, interminável, certeiro para a cabeça de Amy Wambach, no Mundial de 2011, no agónico minuto 122 do prolongamento do jogo dos quartos de final contra o Brasil. Também não necessitava dos dois golos de canto direto que marcou em Jogos Olímpicos (golo olímpico nos Jogos Olímpicos, mítico) ou de ter sido a melhor marcadora e melhor jogadora do Mundial de 2019, em França. Ou da Bola de Ouro e do prémio The Best nesse mesmo ano.
Para Megan Rapinoe ficar na história do futebol, ela só precisaria de abrir a boca. Mas, além do ativismo, da luta contra o racismo, a misoginia, a homofobia, a atacante de 38 anos também é uma grande futebolista. Em novembro, quando definitivamente deixar os campos, o futebol perderá uma craque, uma figura incontestada no panteão das mulheres que mudaram tudo. Mas, felizmente, não perderá a lutadora.
Foi num curto post de Twitter, acompanhado de uma foto sua em criança, e depois em conferência de imprensa que Rapinoe anunciou o adeus. O Mundial de 2023 será o seu último com os Estados Unidos e em novembro, quando terminar a temporada da National Women’s Soccer League, a liga norte-americana feminina de futebol, que disputa com as OL Reign, é o adeus definitivo ao futebol. Portugal, que estará no Grupo E do Mundial da Austrália e Nova Zelândia com a seleção que é bicampeã mundial em título, fará parte, então, da última dança de Megan Rapinoe, nos palcos onde mais se destacou.
“É com um profundo sentimento de paz e gratidão que decidi que esta será a minha última temporada a jogar este bonito jogo”, pode ler-se na mensagem deixada no Twitter. “Nunca poderia imaginar as formas como o futebol iriam moldar e mudar a minha vida para sempre, mas pelo olhar desta menina, ela já sabia tudo”, escreveu ainda a internacional norte-americana, dona de 63 golos pela sua seleção em 199 jogos.
Os olhos daquela menina diriam não só que Megan se iria tornar bicampeã mundial com os Estados Unidos, em 2015 e 2019, como campeã olímpica em 2012, em Londres. E que a sua marca não se iria ficar pelos campos. Antes desses Jogos Olímpicos londrinos, assumiu a homossexualidade, tornando-se uma das vozes mais fortes pela igualdade. Em 2016, ajoelhou-se durante o hino nacional norte-americano, em solidariedade com o quarterback Colin Kaepernick. A federação norte-americana de futebol proibiria o gesto em 2017, mas em 2020, na sequência do movimento Black Lives Matter, que Megan apoiou, rescindiu a proibição e pediu desculpas às atletas.
Em 2019, antes do Mundial que a colocou definitivamente no patamar das desportistas mais importantes do planeta, Rapinoe sublinhou que, ao dispor de uma “plataforma tão poderosa como o desporto, que interessa a milhões de pessoas em todo o planeta”, calar-se “seria egoísta”.
Não se calou também na hora de pugnar pela igualdade salarial dentro da federação norte-americana de futebol entre homens e mulheres. Em fevereiro de 2022, essa igualdade foi alcançada e em julho Joe Biden condecorou Rapinoe com a Medalha da Liberdade, que premiou o seu ativismo social.
Durante o Mundial de 2019, em plena administração Trump, Rapinoe anunciou que não iria à Casa Branca em caso de vitória, passando a ser alvo do então presidente norte-americano e apoiantes nas suas inflamadas redes sociais. Trump disse então que Megan primeiro precisava de ganhar o Mundial e só depois falar. A declaração uniu ainda mais a equipa. Rapinoe marcou na final, levantou o caneco e brilhou depois na parada oferecida pela cidade de Nova Iorque, já que as jogadoras não seriam recebidas por Trump.
Chamada a discursar, Rapinoe, que se move nos palanques com o mesmo talento e mestria que levou para os relvados, clamou pelo amor, num país profundamente dividido.
“Temos de ser melhores, amar mais, odiar menos. Temos de ouvir mais e falar menos. É nossa responsabilidade fazer do mundo um lugar melhor e acho que esta equipa faz um grande trabalho a carregar isso aos nossos ombros, ao entender a posição e a plataforma que temos. Somos desportistas, somos mulheres atletas, mas somos muito mais do que isso”, disse. Não muito depois, ao receber o prémio The Best, em pleno Teatro La Scala de Milão, bem na cara de Gianni Infantino, pediu aos atores do futebol para lutarem contra o racismo, contra a homofobia, que se juntassem a ela na luta pela igualdade salarial.
No Mundial, que arranca já a 20 de julho, teremos a oportunidade de a ver por uma última vez nos grandes palcos do futebol jogado no feminino. Sair com uma vitória seria o lacinho por cima de um presente já bem bonito, até porque, como sublinhou em conferência de imprensa, Megan sabe o que é perder um Mundial (em 2011) e não quer ir embora com essa sensação.