This is a man's world... but it wouldn't be nothing without a woman or a girl. James Brown já o cantava em 1966 e, hoje, elas estão em campo para mostrar que, também no desporto-rei, podem ser rainhas.
Passa pouco das 19 horas quando algumas camisolas cor de rosa começam a aparecer nos campos de treino do Grupo Desportivo Estoril Praia. O choque do rosa contrasta com o verde do relvado sintético - e com o azul e amarelo habitual nos equipamentos do clube.
O ponto de encontro é o campo de cinco, onde todas as segundas e quintas-feiras elas tiram os sapatos de salto e calçam as sapatilhas. De cabelo amarrado, orgulhosamente vestidas de cor de rosa e de bola de futebol na mão: elas são as atletas do Fut4Women.
Juntaram-se em prol do desporto e algumas nem gostavam de futebol. Pelo menos de o ver na televisão. Hoje são fanáticas pelo Estoril Praia e estão religiosamente em todos os jogos a apoiar a equipa.
Sandra Gonçalves é uma delas. Aos 45 anos, confessa que já praticou de tudo - desde o ballet, ao muay-thai e até zumba. Mas o que a conquistou foi mesmo o futebol. "Estou cá com a minha irmã e temos muito o perfil de 'vamos experimentar isto e aquilo', mas nunca eu fui atlética nem desportiva", ri-se. Mas quem delira mais com o seu novo passatempo é o filho de 16 anos. "Ele adora esta minha nova actividade. Conta a todos na escola que eu jogo futebol."
Foi Sandra quem deu o pontapé de saída para a criação da página de Facebook da Fut4Women, onde contam quem são, o porquê de estarem empenhadas no projeto e procuram ter um papel importante na sociedade, empoderando as mulheres.
E, se pelo meio conseguirem quebrar estereótipos, melhor ainda.
Quando começou a jogar, Sandra admite que a reação masculina não foi a melhor. "Gozam connosco, dizem que apenas chutamos na bola. É aquele estereótipo de que o futebol é só para homens. A nossa ideia é quebrar esse tabu e mostrar que podemos começar a jogar futebol em qualquer idade, sendo homens ou mulheres", refere.
Elas são avós, são mães, são advogadas, são gestoras, são engenheiras químicas. Trabalham, cuidam da casa, dos filhos e... jogam futebol. Para Sandra só há uma palavra possível para descrever estas jogadoras: "Guerreiras!"
E arranja-se tempo para tudo? "Nunca pensei que sim, mas arranja-se. É preciso é gostar muito, porque nunca tive tempo para nada e agora tenho tempo para vir treinar duas vezes por semana. Dava a desculpa que tinha de gerir a empresa, tinha os miúdos, mas está a crescer um amor muito grande", justifica, de sorriso rasgado.
Tão grande que começa a suplantar o clube que tinha já no coração: o Benfica. Agora, quando o Estoril defronta o clube da Luz, o coração divide-se. "Tenho imensa dificuldade em apoiar o Benfica quando joga contra o Estoril."
A jogadora diz que o Fut4Women só trouxe vantagens à sua vida: fez amizades, perdeu 10 quilos e melhorou a asma. Começar é que é preciso. "Tem muito a ver com a educação. O meu pai sempre disse que podemos tudo, desde que se queira, e quando eu disse que ia jogar futebol ele achou completamente normal. Acho que isto é uma forma de fazer uma mudança e criar uma nova geração de mulheres que não tenham problemas em jogar qualquer desporto", realça.
Uma lacuna a nível nacional a ser preenchida pelo Estoril - e por Hugo Leal
É Hugo Leal, ex-jogador do FC Porto, do SC Braga, do SL Benfica e de tantos outros clubes, quem orienta estas futebolistas. Com o apoio de mais três técnicos, as mulheres treinam como se na Primeira Liga jogassem. Bom, talvez com um pouco mais de conversa à mistura. "Já tive de ser duro, mas faz parte da aprendizagem para elas. Sinto que para algumas preciso de mimar muito mais porque precisam de mimo para evoluir e acho que isso é o que tem feito a diferença, porque elas vão sentindo-se únicas, compreendidas e acarinhadas. Temos feito muita gente feliz, como elas também nos têm feito felizes, porque foram criado um grupo muito forte, muito coeso e são fantásticas", admira o treinador.
A ideia de criar um projeto tão único como o Fut4Women partiu de um simples treino de futebol feminino, em junho de 2014, quando algumas participantes nas captações mostraram algumas dificuldades com a bola. Hugo Leal, ao ver esse treino, juntamente com uma treinadora, começou a pensar na facilidade que os homens têm em juntar um grupo para jogar. "As senhoras não têm hipótese nenhuma. Portanto, ou pertencem a uma equipa de competição ou dificilmente vão evoluir", constata.
Aquela dificuldade para o sexo feminino criou alguma confusão ao treinador - e diretor da formação -, que decidiu pôr mãos à obra. "Comecei a pensar como nós, Estoril Praia, poderíamos ser pioneiros num projeto onde as senhoras tivessem o seu espaço para evoluir. Como uma escola de futebol para mulheres. Daí nasceu a ideia do Fut4Women."
Aliás, o primeiro a nascer foi o Fut4All, em novembro de 2014, direcionado para todos aqueles que gostavam de futebol e queriam aprender. Ou seja, homens e mulheres. Mas as inscrições que iam recebendo eram só do sexo masculino. "O Fut4All começou a ganhar uns contornos que na realidade eram mais apropriado para os homens do que para as mulheres", continua Leal.
Daí, deu-se mais um passo em frente. O Estoril começou a promover eventos pontuais, Fut4Family, onde se juntavam as famílias dos homens do Fut4All. "Isso teve uma aceitação muito grande. Chegamos a ter treinos com 60 pessoas, onde os miúdos saíam apaixonados pela atividade e as senhoras ainda mais. Levou-nos a apostar num espaço dedicado só às senhoras."
De sete membros iniciais, hoje, um ano depois da criação do Fut4Women, a equipa conta com mais 30 'Ronaldas'. E seriam mais, não houvesse uma lista de espera para se juntar à equipa. "Tivemos que adaptar o crescimento, que durante um período de tempo foi muito grande, e não quisemos em momento nenhum perder a qualidade", sublinha Hugo Leal. A partir do momento em que se deu o 'boom' de inscrições, o clube fechou as novas 'contratações' para criar novos registos de treinos, adaptar e colocar mais um treinador na equipa.
"Agora temos gente em espera. No verão deverá ser fácil aceitar pessoas porque a ocupação dos nossos campos permitirá distribuir as atletas por zonas maiores, mas temos de garantir que, quando as competições voltarem, em setembro, elas terão as condições que a modalidade exige e que nós queremos para as exigências do nosso projeto", explica o 'mister'.
O projeto vencedor do Estoril Praia atraiu até 'olheiros' de outros clubes, que requisitaram a receita do sucesso. "Já fomos solicitados por outros clubes em Portugal para criar isto. Não temos qualquer problema em explicar o que fazemos, como fazemos e por quem fazemos."
O marido era jogador e arrumou as botas... e ela pegou nelas para jogar
Ao começar o treino da última quinta-feira, a boa disposição imperava. A conversa também, ao longo de todo o aquecimento. "São cinco agachamentos", gritava o treinador Paulo Correia, responsável pela parte física. Por entre os murmúrios e algumas reclamações, vários idiomas surgiam no ar. Português, claro, mas também espanhol e inglês. Os exercícios não paravam e as atletas também não.
Emma-Jane Danielsson, britânica, está em Portugal há quatro anos. Não fala bem português, mas quando se joga futebol, é essa a única comunicação que precisa. O marido foi jogador do Belenenses e admite que não era fã da modalidade, a não ser quando o marido jogava. Hoje o companheiro já pendurou as botas e foi Emma quem as calçou. "Ficou surpreso quando me juntei a isto. Ele já não quer jogar e agora sou eu que jogo. Trocamos completamente de lugar", conta. E em casa, há disputas de bola? "Jogamos um pouco no jardim lá de casa, mas é mais ele a mostrar as suas técnicas. Não consigo acompanhar, ele é demasiado bom para mim", ri-se.
Esta é uma experiência como Emma nunca tinha tido. Tudo o que experimentou antes – yoga, ginásio, corrida – aborrecia-a passado algum tempo. Mas o Fut4Women não. "Aqui ficamos apanhadas logo desde o início porque é um grupo fantástico, é como uma pequena família, e podemos conhecermo-nos." Sentimento que partilha com Monique Van Der Zwet, holandesa por terras lusas há uma década.
O que a motivou à prática de futebol foi ver o companheirismo que os homens do Fut4All tinham. "Nós queríamos exatamente o que os homens tinham. Começamos a falar disso, do facto deles terem um grupo onde falavam, socializavam, jantavam...", recorda.
Vindas de fora, as duas lamentam que o futebol feminino em Portugal cresça a um nível muito lento, em comparação com os países onde viviam. "Aqui estamos no início e espero que possamos começar mais equipas. Infelizmente não há muitas equipas, nem de meninas para que elas possam jogar umas contra as outras. Elas treinam e treinam e depois não podem jogar a sério porque não há equipas", afirma Monique, apoiada por Emma: "Há tantas equipas para meninos e muito poucas para meninas. É preciso nivelar essa desvantagem. Elas precisam de mais lugares, mais treinadores e mais apoios."
À chuva, ao sol e ao tempo que for
O Fut4Women leva 109 sessões de treinos desde que começou. Ao chegarem ao sintético e depois de porem a conversa em dia, as mulheres fazem 30 minutos de componente física, a trabalhar o core, os glúteos e restantes músculos. Tudo isto ao ar livre. Faça chuva, faça sol. E não, não faltam nem vão com 'frescuras'. São verdadeiras atletas.
"A primeira vez que choveu, elas tiveram de vir ao treino. A mensagem era 'hoje há treino?'. O primeiro exercício que elas fizeram quando chegaram foram dez flexões exatamente para ficarem encharcadas e perceberem logo que ali treina-se à séria. Portanto elas estão a viver bocadinho aquilo que seria um treino profissional", conta Hugo Leal.
Hugo Leal já treinou equipas masculinas, mas até a experiência de treinar mulheres tem sido algo novo. A questão da entrada no balneário, por exemplo, foi algo complicado ao início, pois para si era natural entrar onde os homens estavam. "Passar a entrar no balneário sem avisar deixou de ser comum", ri-se. Além disso, há outros cuidados que tem ao treinar mulheres. "Com os homens posso ser mais prático, não tenho de me justificar sobre o porquê naquilo que faço. As mulheres gostam de saber o porquê, gostam de fazer perguntas", explica.
Outra diferença é no rigor do trabalho. "Os homens estão na atividade com princípios de evoluir e de serem maiores. Estas mulheres estão numa perspectiva de diversão e portanto a grande dificuldade que tenho é de incutir a ideia que aquela hora é para o trabalho. Tem de haver quase o apitar de início de atividade."
É nesta capacidade de gerir situações que a adaptabilidade dos técnicos do Estoril entra como uma vantagem. Conseguem adaptar-se às necessidades do género para quem trabalham, garante Hugo Leal. É esse o grande desafio enquanto treinadores: criar algo que seja dinâmico, onde as mulheres se divirtam e também tirem algum proveito do projeto.
E o crescimento das participantes - que vão dos 23 aos 62 anos - , num ano de trabalho, é notória. "Nota-se uma evolução muito grande de gente que nunca tinha tocado numa bola e de repente tem bola. Há gente muito habilidosa. Os exercícios estimulam o interesse delas em competir", prossegue o técnico.
Uma família fora da família
Além de treinarem juntas, elas fazem jantares, têm um grupo de Whatsapp onde falam sobre os treinos e já realizaram o sonho de acompanhar a entrada da equipa profissional masculina, num jogo contra o Boavista.
Foi em honra do Dia da Mulher, este ano, e a única condição que tinham era de entrar de mãos dadas com os jogadores. "Era uma piada, nunca eu pensei que fosse uma situação possível", conta Hugo Leal.
Dito e feito. "Elas perceberam que iam entrar num contexto profissional, que não devia haver aquele momento de admiração por serem fãs de alguns atletas, mas foi muito giro e foi uma experiência única para elas."
É algo terapêutico para as senhoras, considera Hugo. Porque o grupo funciona quase como um escape para algum problema que possam ter na vida real. "Estamos a criar cidadãs desportivas com mais qualidade, porque aqui elas têm princípios, desde saber a coexistir num grupo com outras pessoas, com outras mentalidades, outras culturas... Somos educadores de gente adulta", acredita o treinador.
"Já pedimos para jogar contra os homens porque a gente tem a genica"
Agora, elas querem dar provas onde elas têm de ser dadas... no campo, frente aos homens. Quem o diz é Cristina Blanco, que, com 56 anos, faz flexões como se 18 anos tivesse.
É a 'avó' do grupo, mas não perde um dia de ginásio... há 20 anos. Pump, zumba, cycling, boxe... Os dois netos acham-na maluca por jogar à bola, mas garante que eles se derreteram de orgulho ao ver a avó a entrar com os jogadores da equipa principal do Estoril Praia. "A minha filha até chorou", conta. "A família acha bom eu estar aqui porque sabem que estou sempre à procura de coisas novas. Nunca joguei futebol, foi simplesmente porque queria ter um dia diferente. Assim saio do trabalho e venho para aqui."
É efusiva a ver futebol. Tenta não perder um jogo em Alvalade e quando grita golo, grita mais alto do que o marido. "Em casa, o meu marido vê futebol calmamente e eu ando lá aos gritos. Ele diz que sou louca", ri-se.
A mesma energia que põe na vida, deposita-a dentro de campo. Às quintas-feiras sai ansiosa do trabalho em direção aos campos de treino do Estoril. "Exercício físico é a droga mais saudável que há", reforça. E admite que já é mulher para dar uns toquezinhos na bola. "Melhorámos muito. Estas mulheres são danadas. Já pedimos para jogar contra os homens porque a gente tem a genica. Temos camaradagem", considera 'Cris', como é tratada na equipa.
Há muita brincadeira no treino, mas a jogadora acredita que faz parte. "Os treinadores ficam furiosos. Falamos sobre as unhas e o que vimos da Zara. Faz tudo parte deste convívio", opina.
'Cris' só lamenta a falta deste tipo de iniciativas noutros clubes. Equipas "para cotas", diz na brincadeira. "Este pode ser um escape da vida real, um escape ao stress que as pessoas possam ter. Estamos aqui para mostrar que podemos muito bem jogar futebol e sermos tão boas como os homens."