Um dos gestores portugueses mais misteriosos do mercado internacional de futebol, Nélio Lucas, de 40 anos, foi convocado para comparecer num tribunal de instrução em Madrid na próxima terça-feira, 23 de julho, naquele que será o seu primeiro interrogatório como arguido de um processo-crime aberto contra ele, contra a Doyen Sports Investments Limited (uma empresa sediada em Malta de que foi diretor executivo e accionista minoritário) e contra mais quatro pessoas por alegados crimes de fraude fiscal e branqueamento de capitais cometidos em negócios de empréstimos a clubes de futebol, transferências de jogadores e exploração de direitos de imagem em Espanha.
Os outros arguidos, além da própria empresa de investimentos desportivos, são os ex-jogadores do Atlético de Madrid Mariano Aguar Lopez e Juan Manuel López Martínez, ambos representantes da Doyen em Espanha, além de dois familiares deles.
Nélio Lucas, que deixou de estar ligado à Doyen em 2017, foi intimado a comparecer no tribunal a 23 de julho, mas ainda não é certo que o faça. Os seus advogados podem tentar protelar o interrogatório, depois de o já terem feito esta semana quando foi convocado para uma primeira data, alegando que o gestor e empresário português não tinha disponibilidade para se deslocar a Madrid num intervalo tão curto de tempo.
Na Operação Dean, como foi baptizado o processo-crime, estão em causa, para já, mais de cinco milhões de euros de impostos relativos apenas a 2013. De acordo com o auto de admissão do inquérito-crime pelo tribunal central de instrução em Madrid, um documento de 32 páginas assinado pelo juiz de instrução José de la Mata a que o Expresso teve acesso, “deverão ser somados a isso novos valores logo que estejam disponíveis as informações necessárias para os quantificar”.
Apresentação de contas coincidiu com Football Leaks
O juiz de instrução refere explicitamente no documento que apenas “por ocasião da fuga de informação dos Football Leaks, a partir de 2015, a Doyen Sports Investments Limited começou a depositar no registo comercial as contas anuais dos exercícios fiscais de 2011 e seguintes”. Na realidade, isso aconteceu na altura das primeiras revelações trazidas pela plataforma Football Leaks, na sua fase inicial, quando algumas informações foram divulgadas sobre a Doyen. Isso foi antes de, no princípio de 2016, um dos colaboradores da plataforma, o português Rui Pinto, ter começado a entregar documentos à revista alemã Der Spiegel, que os partilhou com outros media parceiros do consórcio European Investigative Collaborations (EIC), de que o Expresso faz parte, levando à publicação de duas vagas de artigos de investigação com o nome Football Leaks, em dezembro de 2016 e novembro de 2018.
Nélio Lucas e a Doyen apresentaram uma queixa no Outono de 2015 no Ministério Público em Portugal contra Rui Pinto por tentativa de extorsão e acesso ilegítimo a dados — em que o diretor executivo da empresa acusou o whistleblower, que usou na altura o nome de código Lubozov, de lhe ter exigido entre 500 mil e um milhão de euros em troca de eliminar documentação comprometedora.
Foi com base nessa queixa que as autoridades portuguesas abriram um processo-crime e conseguiram que Pinto fosse detido em Budapeste, na Hungria, em janeiro deste ano e transferido dois meses depois para Lisboa, onde tem estado em prisão preventiva desde então.
Numa entrevista dada à Der Spiegel, à televisão pública alemã NDR e ao jornal online francês Mediapart em fevereiro, publicada pelo Expresso, Rui Pinto contou, em sua defesa, que “a única razão” pela qual contactou a Doyen “foi para confirmar a ilegalidade das suas ações, com base na quantidade de dinheiro que estivessem dispostos a pagar para que os documentos não fossem divulgados”. E acrescentou: “Quis perceber quanto lhe ofereciam [referindo-se a um advogado que o representou num encontro com Nélio Lucas]. Enquanto ele negociava, eu continuei a ler os documentos. Enquanto o fazia, dizia para mim mesmo: Se os deixo comprarem-me agora, não valho mais que todos estes esquemas. Por isso escrevi à Doyen e disse-lhes para ficarem com o dinheiro. Não me pagaram um único cêntimo. O que fiz foi muito ingénuo. Olhando para trás, arrependo-me. Mas repito, nego ter cometido qualquer crime.”
Juiz ordena junção de outro processo
Na investigação em curso em Espanha, o juiz de instrução ordenou que o processo-crime por fraude fiscal e branqueamento de capitais incorpore um outro inquérito aberto em 2018 na Procuradoria Especial contra a Corrupção e o Crime Organizado — uma espécie de DCIAP espanhol — e que poderá ter a ver com factos relacionados com a Doyen.
Com um capital inicial de 100 milhões de euros, a Doyen Sports foi fundada em 2011 por uma das famílias mais ricas do Cazaquistão, os irmãos Arif. Oficialmente e de forma indirecta, o accionista de 80% do capital social da empresa é detido por Malik Ali, sobrinho do mais novo dos irmãos Arif, Refik. Os outros 20% foram oferecidos a Nélio Lucas quando ele aceitou deixar de trabalhar para o agente israelita Pini Zahavi para se tornar o principal gestor da Doyen.
Até essa prática ter sido banida pela FIFA em 2015, a Doyen dedicou-se a investir em contratos de TPO (Third Party Ownership) em compras e vendas de jogadores, em que ganhava uma percentagem do valor de transferências futuras.
Os dois representantes espanhóis agora arguidos chegaram a criar em 2011 com Nélio Lucas uma sucursal espanhola da Doyen — a Assets 4 Sports S.L.3 —, mas essa sucursal foi substituída em 2013 por uma companhia em Malta, a Vela Management, controlada por um dos espanhóis, Mariano Aguilar Lopes, e pelo gestor português.
Apesar de ter havido uma transferência formal da atividade de Espanha para Malta, isso não correspondeu à realidade. Segundo o auto do processo-crime, Aguilar Lopes e Juan Manuel López Martinez continuaram a negociar contratos com clubes espanhóis e futebolistas a jogar em Espanha, seguindo as instruções dadas por Nélio Lucas, mas nunca declararam rendimentos dessas operações às autoridades fiscais espanholas. A partir de certa altura passaram inclusive a ter as suas residências fiscais no Reino Unido e na Suíça.
Um despacho do Ministério Público entregue ao tribunal menciona uma série de contratos feitos em Espanha durante o período sob investigação. Entre elas, estão a compra e venda dos direitos económicos de Guilavogui e Falcao ao Atlético de Madrid, a aquisição de parte dos passes de Miroslav Stepanovic, Kondogbia, Babá, Barrada, Pabón, Martins, Pérez del Mármol e Alberto Botía, além de empréstimos concedidos ao Atlético de Madrid, Sporting de Gijón, Getafe, Sevilha e ao seu presidente, José María del Nido. Ao todo, só em 2013 a Doyen facturou 19 milhões de euros.
Em março deste ano, a Doyen tinha sido multada em Malta em 23 mil euros pelo regulador local, a MFSA, por violação da lei sobre entidades financeiras.
Os investigadores do caso em Espanha, que incluem agentes da Guarda Civil e inspetores da autoridade tributária, caracterizam a Vela Management Limited, registada em Malta, como “uma empresa meramente instrumental e sem materialidade própria, utilizada de forma fraudulenta por Mariano Aguilar López e Juan Manuel López Martínez, juntamente com Nélio Freire Lucas, para ocultar ao tesouro espanhol as suas actividades e rendimentos profissionais”.
O juiz de instrução fala de uma “estratégia aparentemente deliberada de utilização de múltiplas companhias interpostas utilizadas para a atividade das pessoas contra as quais se dirige a ação penal, o que exigirá o exame de documentação abundante e complexa”, admitindo que isso “aumentará as dificuldades da investigação”. Segundo José de la Mata, “é também evidente que a investigação do caso, tendo em conta as circunstâncias acima referidas, exigirá mecanismos de cooperação judiciária internacional”.