Desconheço onde estará Yuriy Vernydub. Há oito meses, de fato e com os derradeiros botões da camisa abertos, credencial pendurada ao pescoço, estendia as asas para boa-vindar abraços de quem trabalhava com ele no Santiago Bernabéu. Acabava de ganhar em casa do Real Madrid com o Sheriff de Tiraspol, das equipas mais desconhecidas e pequenas a alguma vez porem o pé na Liga dos Campeões, vindos de uma cidade de um país dentro de um país. Agora, estará algures na Ucrânia, quiçá em alguma trincheira, com as mãos por momentos a repousarem das armas e a segurarem um ecrã de telemóvel.
Yuriy Vernydub é ucraniano e as últimas fotos conhecidas dele já não o tinham aperaltado, mas militarmente fardado. O primeiro treinador a derrotar o Real esta época, na Liga dos Campeões, escolheu ir ser soldado para o seu país em fevereiro, dias após a Rússia o invadir e dias antes da equipa espanhola voltar a perder, só que nem por isso: de proeza em proeza quase inexplicável, o Paris Saint-Germain, o Chelsea e o Manchester City também a derrotariam, sem realmente lhe ganharem. Vernydub foi o único técnico a vencer o Real sem volta a dar.
Não se sabe se estará em Kyiv, dita como os ucranianos lhe chamam, onde Real Madrid e Liverpool colidiram em 2018. Por certo não andaria em Paris, para onde esta final da Liga dos Campeões foi transferida naqueles dias em que Vernydub foi para a guerra e a guerra mexeu com tudo. A violência do pior que há fez a UEFA tirar o jogo de São Petersburgo e colocá-lo no Stade de France, onde outro tipo de danos adiaram o consumar do reencontro destas duas equipas por mais de meia hora.
Havia enxurradas de adeptos junto às entradas do recinto, com bilhetes na mão e sem hipótese de entrarem, gás lacrimogéneo a ser usado pela polícia e dezenas de pessoas a saltarem os portões. Era uma desorganização caótica à vista, embrulhada pela UEFA na desculpa de “chegada tardia de adeptos” que escreveu nos ecrãs gigantes do estádio. Os jogadores tiveram de repetir o aquecimento dos músculos, as suas caras tão desentendidas como as das pessoas nas bancadas, incluindo a de Thiago Alcântara. Ele era a dúvida existencial antes de a final ter dúvidas de segurança.
O pequeno planeador pessoal da bola aqueceu à parte da equipa e com um preparador físico, uma lesão de há uma semana teve-o em pinças até Paris, mas o médio pôde jogar no coração de onde as coisas se decidem, nos sítios a partir dos quais o Liverpool cedo quis empurrar a final contra o Real Madrid. Os passes de Thiago faziam a equipa progredir metros e saltar linhas de adversários. Mesmo que mazelado ele era o orquestrador de jogadas, protegido pelas rápidas recuperações de bola de Fabinho e respirando no esforço de Henderson em pujar os momentos de pressão — com o alvo preferido em Toni Kroos, o melhor passador dos médios e o mais lento.
Durante a maioria da primeira parte, o Liverpool jogou como costuma, cheio de uma intenção vertical de levar o jogo para as redondezas da área dos outros, onde tem os três airados que arruinam a vida de quem os tem de defender. Ninguém entre Luis Díaz, Sadio Mané e Mohamed Salah é avançado e nenhum se deixava estar perto de Militão ou Alaba, centrais que assim não tinham a facilidade de referências para marcar. Em vez disso, ficavam com espaços por acautelar.
O mais difícil que há para se defender foi demonstrado, por várias vezes, pelo trio atacante do Liverpool. Irrequietos a tentarem tabelas, a pedirem a bola em zonas de ninguém ou a aproximarem-se uns dos outros, os dois mais antigos atazanaram as costas dos médios do Real Madrid e a frente dos defesas. Salah desviou um cruzamento rasteiro (17’) de Arnold e remataria de primeira (18’) um passe de Mané; de seguida, o senegalês rodaria para a baliza perto de muita gente, desnorteou vários adversários e também rematou (21’) à entrada da área.
Foram trabalhos forçados para Thibault Courtois. Primeiro foi à relva, depois agarrou a bola de pé e, por último, safou a ameaça mais perigosa com os dedos esticados que desviaram a tentativa de Mané rumo a um poste. Três das cinco defesas feitas pelo belga até ao intervalo impediram o consumar do perigo a que o Liverpool se submetia, porque sim, jogando assim, a equipa rockeira e de esticões calculados de Jürgen Klopp baloiçava numa corda bamba com fogo a queimá-la por baixo.
Courtois ser o guarda-redes com mais paradas feitas na Liga dos Campeões e ser obrigado a tanto, mais uma vez, em mais outro jogo, reforçava os ares de filme repetido desta final.
O Real Madrid não quis trocar socos com o Liverpool. Para quê, uma equipa só embarca nas fortalezas do adversário se segura estiver de que as suplantará com as suas, mas não, os merengues defenderam-se com as linhas recuadas e junto à área. Esperando e não provocando, aguardando ao invés de arriscar baixar os punhos da cabeça. Sofreram encolhidos sem a bola e foram mirrados com ela, quando quiseram sempre sair da sua área em passes curtos, com calma anormal e pisões na bola que cortejam o azar. Mas, como há equipas em Paris, Londres e Manchester a atestá-lo, o Real Madrid é o pinóquio.
Pressionada, a errar mais do que acerta, sem conseguir alcançar a área adversária por mais que Karim Benzema fugisse de lugares onde se espera que um avançado esteja, mas ele joga para não estar e lá aparecer quando não espera, a equipa espanhola era em tudo inferior ao Liverpool. E mentirosa, tão de nariz a crescer que, no minuto anterior ao intervalo, bastou uma matreirice de Benzema (à espera entre Van Djik e Robertson) e uma dúvida (o lateral escocês olhou para Valverde, aberto na direita) para Alaba picar um passe para o francês receber na área e uma embrulhada de ressaltos o deixar fazer golo.
O VAR anularia a maldade tão real madridesca e reverteria, portanto, os remates à baliza para zero. A insídia dos números também se compadece com a equipa que esta Champions guardará, ainda mais, como a rainha das ressuscitações milagreiras, mesmo que o clube já tivesse história de reviravoltas operadas vindas de décadas atrás. Porque nem outros 15 minutos ficaria sem bolas atiradas ao alvo e com os adeptos brancos do Stade de France silenciados, a assistirem como no teatro.
Uma saída de bola da própria área, acalmada e dependente em passes rasteiros, convidaria de novo o Liverpool a pressionar alto, mas já sem o conforto de um hábito a alimentá-lo. O Real viera para a segunda parte um quê diferente, ganhando uns metros de relvado ao sítio onde montavam o bloco para defenderem e fazendo por incomodar mais os médios ingleses, sobretudo Thiago. O Liverpool já não caía sobre os adversários com a mesma sincronia.
Vendo as nesgas de espaço abertas, Luka Modric inventou o passe que deu à luz o que a jogada queria ser, atirando a equipa para a frente e a sequência desenrolando-se naturalmente a partir daí, mais por tanto talento existir entre gente com as mesmas camisolas do que por improvisação casual: Carvajal foi ao centro do campo participar e houve a movimentação esperta de Benzema até que a bola alcançou o galopante Valverde, na direita. O uruguaio quis rematar à baliza, só podia, mas a tentativa entortou-se e foi ter com Vinícius, que atrás de Robertson esticou o pé para desviar o 1-0.
Aos 59’, o Real Madrid era como foi nesta Liga dos Campeões, a rugir jogando pior, a espernear sem ameaçar, a meter-se a ganhar sendo a equipa que menos produzira para tal. A câmara apontou para um tipo encapuçado na bancada, de olhar sereno. Era Zinedine Zidane, o treinador com quem os trintões entre eles colecionaram três troféus seguidos destes, na década passada. Feito o golo, a postura de quem hoje os acompanha era a de sempre: uma sobrancelha ao alto, mãos na cintura, gravata e colete, Carlo Ancelotti estava tranquilo. Antes do jogo, no relvado, disseram como os jogadores tinham feito uma “siesta” de uma hora e “os mais velhos manejavam bem” estas finais.
O italiano é treinador, mas ser-lhes-á outras coisas. Às vezes um colega, outras um orientador, ele próprio já admitiu que tenta só orientá-los e lhes pergunta como acham que devem jogar. Numa equipa mentirosa, Ancelotti é o Gepeto e a forma como o Real Madrid perdurou no resto do tempo que havia no Stade de France faz-nos, novamente, duvidar do que significará a lógica no dicionário do futebol.
E atestar o quão aleatório e imprevisível também é.
Socado em cheio nas beiças pelo golpe que mais terá sido visualizado, com receio, pelos jogadores, o Liverpool atirou-se para cima dos espanhóis. Encostou-os à área mais ainda do que eles próprios recuaram, então já pouco se importavam na impressão dada pela estratégia. Agora era resistir e aguentar, confiando mais ainda na inspiração que mora em cada um dos futebolistas do Real Madrid.
E o Liverpool atacou com as suas armas, que são muitas e nenhuma estaria mais inflamada do que Salah, único falador em vingança antes da final. O egípcio saiu cedo do confronto de há quatro anos e cada jogada em que participou parecia um grito contra a pancada de Sergio Ramos, em Kyiv, que lhe machucou o ombro. Além do remate atabalhoado de Keita (81’) ou a tentativa de Diogo Jota (80’), o encaracolado atacante rematou à distância (64’), na área a acorrer a um cruzamento (68’) e ainda mais dentro dela a receber a bola com classe veloz para logo a disparar (82’), quase à queima-roupa. Nessa última vez, deixou os joelhos tombarem na relva, todo o corpo vestido de desespero.
Porque, em cada tentativa, houve a perícia da envergadura de Courtois a barrar a bola, o belga feito uma das melhores existências de um guarda-redes em finais da Liga dos Campeões e, certamente, o mais decisivo de todos os que valeram orelhudas ao Real Madrid este século. Parecia haver um espírito a encarnar em direto no gigante de cara estreita e nariz comprido, a pontuar na face. É condigno, também ele é um pinóquio do futebol.
As suas paradas confirmariam o desterro do Liverpool e a bonança do Real Madrid, deste Real, que revirou tantas vezes a própria sina e, desde a fase de grupos, teve menos minutos a ser realmente melhor do que um adversário do que o contrário, mas, ao apito-mestre, não foram os seus jogadores a caírem de costas no relvado, derrotados por um destino inexplicável. Os de branco correrem desenfreados pelo campo, Benzema o mais calmo de início, apenas a abrir os braços em voilá, e Kroos a deitar-se em cima de Modric para se enrolarem num abraço. Todos têm agora cinco Ligas dos Campeões ganhas em nove anos.
Ainda bem que eu a escrever e o leitor a ler já não implica papel e tinta, esgotaríamos ambas sem proveito se não nos quiséssemos ficar pelo mérito do Real Madrid e quiséssemos esmiuçá-lo. O que aconteceu entre uns meses de 2021 e 2022 não é sorte, nem destino, também não será coisa de milagres, superstições ou planetas alinhados. Esta Liga dos Campeões do Real, a 14.ª para o clube, virá e viverá algures do grito espantoso vindo das almas dos adeptos merengues que estiveram no Stade de Franco quando entoou o refrão da “We Are the Champions”, canção predileta dos momentos de levantamento de taças.
Quando Marcelo a ergueu, liderando a equipa e com Carlo Ancelotti entre eles, como um deles, eles absorveram a canção das colunas do estádio. Foi estrondoso, a vibração até se expandiu pela televisão. Essa energia de quem apoia e vai recebendo as maiores conquistas em troca é mais explicável do que as tantas vezes que a equipa do Real Madrid fez dos jogos meros mentirosos, ganhando-os quando os adversários os tinham quase vergados na aparente inferioridade.
Deixemo-nos de esgotar o scroll de uma crónica e fiquemo-nos pelo que o Real Madrid e os seus lendários jogadores são: uns mentirosos do futebol, porque nunca houve equipa a elevar-se tão acima do que, normalmente, faz os campeões. Eles fizeram-se com muito mais do que isso e algum dia descobriremos do quê.