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“O futebol tolera jogadores negros, não aceita as pessoas negras”: uma conversa com o fundador do Observatório da Discriminação Racial

Em entrevista à Tribuna Expresso, Marcelo Carvalho, diretor e fundador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, define as linhas para combater o racismo e reflete sobre o papel de clubes e imprensa na discussão. As denúncias e queixas concretas dos futebolistas são fundamentais. Depois, a luta de sempre são os preconceitos raciais que existem nas pessoas: "No futebol, a partir do momento que um jogador não corresponde mais à expectativa de cada um dos adeptos, eles sentem-se no direito de xingar [insultar]. Com os negros, eles sentem o direito de desumanizar"
Nicolas | Observatório da Discriminação Racial no Futebol

Em 2018 disse que a democracia racial no desporto e no futebol era uma falácia. Em que ponto estamos?
Continuamos no mesmo ponto. A gente está vendo casos de racismo no Brasil, nos torneios sul-americanos e pelo mundo. O que a gente está percebendo é a reação das instituições, que continuam comandadas pelas mesmas pessoas, pelos mesmos homens brancos que não abrem essa porta para que outros façam parte desse mundo.

Criou o observatório em 2014. Que conclusões gerais pode retirar desse trajeto?
A conclusão maior é o quanto conseguimos avançar neste debate, no sentido de consciencializar adeptos e jogadores sobre o tema porque, hoje, muito do que vemos do aumento das denúncias, acontece porque torcedores, jogadores e jornalistas estão mais conscientes do que é o racismo e do papel deles nessa construção do combate ao racismo, nessa necessidade de estar atento para denunciar e não tolerar esses casos de racismo.

Nessa caminhada vislumbrou algum momento-chave ou clique que tenha transformado o debate ou empoderado o tema?
Acho que não houve um clique. O que a gente conseguiu perceber foi que esse aumento da consciencialização passou por vários fatores: pela quebra do silêncio dos jogadores, pelos adeptos que estão a identificar os casos, pelo crescimento das organizações de adeptos, de LGBT, de mulheres e de negros que se estão a envolver, e também dos clubes de futebol, que estão a posicionar-se e a tentar inserir-se nesse combate ao racismo. Passa por isso. Se tivermos de marcar um ano de mudança, 2019 parece ser simbólico: saímos daquele lugar em que falamos quase sozinhos para chegar a um lugar onde estão mais pessoas a falar a respeito do tema.

O racismo volta a estar na ordem do dia depois de vários casos de injúrias raciais nas competições da Conmebol e pelo anúncio do agravamento das multas. O que achou da decisão?
Achei que a decisão da Conmebol foi boa, no sentido que reagiu a uma demanda que estava sendo imposta pela sociedade. Noutras situações, a Conmebol simplesmente ignorou essa demanda, os casos e a bola seguiu. Mas desta vez resolveu dar uma resposta para a sociedade de um modo geral. O que vamos ter de monitorizar é se essa punição será colocada em algo real, ou se vai ficar no papel. A dúvida que fica é quais são as situações que vão ser punidas pela Conmebol e se vai ter essa mão pesada que prometeu nos próximos casos de racismo.

O presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) quis ir mais além, sugerindo a penalização dos clubes com pontos perdidos nos torneios. Concordou com a proposta de Ednaldo Rodrigues?
Concordei. Achei que fugiu ao que sempre víamos, que era um comportamento padrão da CBF, com nota de repúdio padrão. Desta vez, a CBF resolveu ser mais incisiva e inclusive contestar uma decisão da Conmebol. Acho esse posicionamento muito bom, espero que tenha reflexo no futebol brasileiro. Estamos falando dos casos em torneios sul-americanos, mas também precisamos de conversar sobre os casos que ocorrem no Brasil.

Ia perguntar-lhe isso: não fazia sentido começar pelas ligas nacionais?
Faria e faz sentido começar pelas ligas nacionais, mas neste momento foi muito mais uma resposta de Ednaldo Rodrigues à demanda, ao facto de os clubes brasileiros estarem sendo vítimas de racismo e ele, sendo de uma instituição nacional que está ali para proteger os clubes, pronunciou-se a favor dos clubes do Brasil perante uma instituição maior. Mas agora, num segundo momento, fica a pergunta: o que vai ser feito pela CBF nos casos que temos aqui no Brasil? Já são muitos. Em 2022, o observatório já monitorizou 30 casos de racismo no futebol brasileiro, sete deles em torneios sul-americanos. Mas são 30 casos já envolvendo clubes brasileiros.

Como avalia o debate sobre racismo?
Ainda está muito raso. A gente ainda está debatendo punição, se os clubes devem ser punidos ou não devem ser punidos, se são os adeptos que cometem o ato. Deveríamos estar num passo bem mais avançado, que é o que podemos fazer, na prática, para combater o racismo; o que pode envolver clubes e sociedade. A punição já devia ser algo bem definido na cabeça de todo o mundo, principalmente de quem comanda o futebol. O que estamos a pensar é o que podemos fazer para envolver adeptos, jogadores, funcionários dos clubes, o que as pessoas podem fazer quando presenciam um ato de racismo, o quanto um jogador de futebol está protegido para denunciar racismo. Deveríamos estar nesse debate e não no debate que começou lá atrás de quem punir e como punir.

A abordagem da imprensa é satisfatória?
Ainda é um ponto muito raso. Muitas vezes, a imprensa está preocupada em trazer a notícia da denúncia e tem até aquela questão dos cliques, do engajamento para o jornal, mas debate-se pouco sobre como podemos avançar nas ações. Vamos encontrar agora uma série de notícias sobre o ato de racismo, mas vamos encontrar poucas informações sobre o desdobramento desses casos. Porque é que o caso foi para a frente ou deixou de ir para frente? O papel dos média pode avançar muito, muito mesmo, até porque vemos algumas pessoas que trabalham nesses veículos a dizerem que isto não passa de vitimismo. Isso não pode ser tolerado num veículo de informação, não pode ser considerado normal, não se pode dizer que racismo é vitimismo. Afinal de contas, o racismo é crime.

Isso aconteceu agora na Rádio Bandeirantes de Goiânia, certo? Com Fellipe Bastos [ex-jogador do Benfica e Belenenses].
Isso. Mas isso é só um exemplo, já vimos vários exemplos disso.

Acha que perguntamos o suficiente aos negros o que sentem, ouvem e pensam sobre estes temas?
Não. Há pouco debate. Temos tradicionalmente uma imprensa de homens brancos, não colocamos homens negros e mulheres negras nesse debate sobre o tamanho dessa dor, para que o jornalista depois não a diminua, como no caso de Goiânia. É preciso que as pessoas negras tenham espaço para dizer o quanto é doloroso, que até para denunciar racismo não é fácil.