Apesar da cara catraia, Mathieu van der Poel já não é exatamente um bebé. Há um ano, já com 26 anos, o neerlandês estreava-se na Volta a França depois de se dedicar essencialmente às corridas de um dia e ao ciclo-cross, disciplina onde já foi campeão mundial por quatro vezes.
Quando deixava os percursos lamacentos do todo-o-terreno, era nas clássicas que Van der Poel se sentia em casa: campeão na Amstel Gold Race em 2019 e na Volta à Flandres em 2020 (repetiu triunfo este ano), o explosivo neerlandês era sempre ausência de vulto nas grandes voltas, por não lhe interessar particularmente as exigências das três semanas - erradamente pensamos que os heróis estão só nas corridas por etapas - quando o seu corpo era feito para outras aventuras igualmente gloriosas.
Essa espécie de boicote não oficial às maiores corridas do mundo acabou há um ano na Volta a França. E com toda uma carga emocional às costas: o avô de Mathieu van der Poel era o mítico Raymond Poulidor, um dos mais amados ciclistas franceses da história, apesar de nunca ter conseguido vencer o Tour - foi segundo por três vezes, com a bola sempre a bater na trave.
E na estreia na mais importante prova do ciclismo mundial, o homem das clássicas brilhou naquele que é um dos seus habitats naturais: chegadas com rampas curtas mas exigentes. No Mur-de-Bretagne, logo à 2.ª etapa, o comboio Van der Poel bateu as pernas naquele ritmo tão pesado como difícil de acompanhar quando lançado. Foi o primeiro e apontou o dedo ao céu, para o seu avô falecido em 2019, logrando também o que Poupou nunca havia conseguido na sua larga carreira: envergar a camisola amarela na Volta a França.
Van der Poel passeou-se de amarelo durante cinco dias e depois foi à sua vida, para preparar os Jogos Olímpicos de Tóquio, nas bicicletas de montanha. E esta temporada resolveu dar nova oportunidade às grandes voltas.
A etapa inaugural do Giro não podia ser mais ao jeito do homem da Alpecin-Fenix, com partida em Budapeste, capital da Hungria, e chegada a Visegrado, com uma quarta categoria a fechar a tirada, uma subida curta mas capaz de criar mossa. Praticamente desde o quilómetro zero da etapa de 195 km, dois homens da Androni, uma das equipas italianas convidadas, atiraram-se para a frente, porque é nestas tiradas que aparecem as melhores oportunidades de mostrar a camisola. Mattia Bais e Filippo Tagliani andaram sozinhos praticamente até aos 15 quilómetros finais, quando foram apanhados por um pelotão até aí com um dia tranquilo.
Com a chegada a Visegrado já à vista e o terreno a empinar, Lennard Kamna (Bora) tentou um ataque. A meta estava a dois quilómetros, mas a subida era inclemente, capaz de tirar praticamente todos os puros sprinters da equação. Só restou um: Caleb Ewan (Lotto), o pocket rocket, o australiano diminuto que parecia destinado a vestir a primeira camisola rosa da edição de 2022 da Volta a Itália.
Mas a etapa era para a passada de Van der Poel. Com Kamna já apanhado, o neerlandês apareceu nos metros finais, com Biniam Girmay (Wanty) na sua roda. A Ewan calhou o azar: bateu com a roda dianteira na traseira da do ciclista eritreu e caiu, deixando a luta pela vitória na tirada (e da camisola rosa) para os dois da frente. E Van der Poel, que no início da etapa já havia avisado o quão “especial” era correr no Giro, imitou o que fez no Tour: na estreia, vitória de etapa e camisola de líder no corpo.
Para Girmay o 2.º lugar é fraco consolo para quem chega ao Giro com um objetivo especial e importante: tornar-se no primeiro negro a vencer uma etapa numa grande volta. Terá outras oportunidades.
Quanto aos favoritos, nenhum deles subestimou esta primeira etapa e a sua exigente chegada: Pello Bilbao (Bahrain) foi terceiro e ainda agarrou quatro segundos de bonificações. Wilco Kelderman (Bora) foi 5.º e Richard Carapaz (Ineos) chegou em 6.º, ambos com o mesmo tempo do vencedor. Todos os restantes pontas de lança perderam segundos: João Almeida (UAE Emirates) deixou quatro segundos para Carapaz e arranca o Giro em 14.º na geral, a 14 segundos de Van der Poel.
Sábado será um dia em que Almeida poderá estar em destaque: o português será mesmo um dos favoritos ao curto contrarrelógio de 9,2 quilómetros que vai percorrer as ruas de Budapeste.