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Expresso

Que a sorte esteja connosco

Bruno Vieira Amaral desmistifica a ideia de Fernando Santos como um portador involuntário da sorte e lembra outros momentos em que esta não esteve com ele (ou connosco). Na última quinta-feira, calhou estar virada para o selecionador nacional, terça-feira poderá não estar

ESTELA SILVA/LUSA

Imagino que o engenheiro Fernando Santos, ao ouvir os comentadores atribuírem à sorte os méritos das suas conquistas, deva sacar de um cigarro e afivelar um daqueles sorrisos retorcidos olhando através do fumo para os tempos em que era a personificação do azar, o pé-frio por excelência, o homem que perdia campeonatos com Jardel na equipa, o treinador despedido do Benfica à segunda jornada do campeonato.

Até chegar à seleção, Santos nunca foi um treinador propriamente bafejado pela sorte, excetuando quando o incumbiram da tarefa quase honorífica de rematar a conquista do quinto campeonato consecutivo do Futebol Clube do Porto que o levou a ficar conhecido, por antonomásia e com alguma ironia (digo eu), como “o engenheiro do penta”, feito que, mais do que qualquer coisa, lembrava aquele dito antigo sobre “engenheiros de obras feitas”.

A partir daí a vida não lhe correu mal mas também não lhe correu tão bem que julgássemos que andava com uma pata de coelho no bolso ou que tinha feito um pacto com o diabo. Só os resultados na seleção, com a milagrosa vitória no Euro 2016 a luzir lá no alto, e certas premonições que o treinador foi distribuindo em modo esfíngico, alteraram a perceção universal de Fernando Santos como vítima repetida de desígnios insondáveis, com uma propensão para a fatalidade de que a sua fisionomia carrancuda era o símbolo perfeito.

Deu-se uma daquelas alterações fundamentais de que são feitos os mitos e as lendas – o homem que enriquece ou se torna sábio de um dia para o outro – e a fortuna que tanto maltratara o selecionador agora carrega-o nos braços por tormentas em parte causadas pelo próprio. E tal é o descaramento da sorte que não tem pejo em pôr uns simpáticos macedónios no caminho de Portugal, afastando gentilmente os italianos de quem somos fregueses habituais, e colorindo os seus caprichos com um penálti atirado para o assento empíreo por um otomano que não os costuma falhar.

Se Fernando Santos se preocupasse com estas análises sobre os caprichos da fortuna, perguntaria certamente onde andava o sopro da deusa quando em novembro Mitrovic marcou o golo da vitória sérvia que nos mandou para o play-off. Ou porque é que a sorte não veio em seu auxílio naqueles fatídicos jogos contra o Uruguai, no Mundial, e a Bélgica, no último Europeu. Quem sabe? Por alguma razão os romanos representavam a deusa com uma venda nos olhos e, ao contrário da justiça, sem uma balança. É para onde está virada. Para onde calha.

Na passada quinta-feira, calhou estar virada para Santos e, por extensão patriótica, para todos nós, que no fundo queremos é que a seleção ganhe, dê lá por onde der. Se nem Napoleão, que era Napoleão, se queixava da sorte dos seus generais, e até a prezava acima de quaisquer outras virtudes, quem somos nós para exigir que, além da sorte, a seleção nos ofereça bom futebol?

É bem certo que a sorte não explica tudo e que se amanhã a Macedónia do Norte nos fizer a nós o que já fez à Alemanha e à Itália outro galo cantará. Mas certas conjugações de resultados e concertações cósmicas são de tal forma improváveis que não temos outro remédio que não seja classificá-las de sobrenaturais. Felizmente caíram para o nosso lado e, nesse caso, recomenda a cautela e a superstição que não espantemos a sorte com inquéritos escusados. Se a fortuna é por nós, quem contra nós será.