Somos criaturas de hábitos, nada há a fazer quanto a isso, inumano seria que Fernando Santos não fosse homem de ter os seus bem vincados, até gretados no fundo do seu ser como as rugas de expressão que lhe torneiam a cara. Fomos conhecendo aquelas feições de arrelia do selecionador nacional à medida que nos acostumámos a tradições suas. Coisas ditas ou decididas, uma certa forma sua de agir perante as intermitências da bola que ajuda a traçar quem é ele enquanto treinador de Portugal.
Ter o seu modus operandi como conservador ou, pelo menos, reservado em certas escolhas de jogadores e abordagens de jogo, foi uma perceção cimentada com os anos, Fernando Santos não é homem de fugir ao que já resultou. É outra forma de dizer que não é de grandes mudanças como as que fez no Dragão, no ‘lugar’ onde jamais estivera, a agir como nunca: num play-off (o seu primeiro na seleção) a duas eliminatórias de jogo único (formato inédito), a fazer estrear dois futebolistas em jogos a sério, colocando um outro, mais do que rodado na seleção, na posição 6 quando tem carreira feita a 8.
Algumas tinham de ser. Entre a covid-19 a prestar visita a convocados ou devido a lesões de outros, Danilo fez-se de central e João Moutinho ficou como médio mais recuado, passando ele a ver, a cada vez que se virava com a bola de frente para o resto do campo, um Otávio a espreitar entre o meio e a direita, a transladar para a seleção a hibridez de posicionamentos que tem no FC Porto. Ainda no papel, poderia espantar. Mas, no estádio atolado de gente, viram-se os frutos desta árvore a abanarem fortemente pela forma como tantos turcos pareciam andar a pastar no relvado.
O naturalizado médio que nasceu ligado à corrente, irrequieto na forma como pede a bola, a dá e logo a vai buscar noutro sítio, cedo prosperou quando a seleção atacava pelo lado onde a Turquia mais se desorganizava. Isto, por cima do quão passivos os seus jogadores eram a defenderem e a reagirem à mais pequena movimentação que lhes quisesse prender a atenção, ou fazê-los duvidar um pouco do que fazer. Coletivamente, os turcos eram um acumular de buracos abertos sem muito custo pela forma passiva como cada jogador se comportava, sem a bola.
Ainda o primeiro minuto não se completara e já Diogo Dalot zarpara por trás de Bruno Fernandes, que recebera um passe de Otávio e esperou para dar no lateral e ele cruzar; aos 9’, de novo o médio fixou um adversário para lançar o lateral que passou rasteiro, e para trás, onde Ronaldo rematou a bola em direção à bancada. O mais fácil dos desequilíbrios estava pela direita, onde o extremo Aktürkoğlu não acertava onde deveria estar, o ala Kutlu era apanhado em inferioridade numérica e o central desse lado, Söyüncü, era atraído e se deixava levar por qualquer corpo que corresse nas suas imediações.
De passes tricotados confortavelmente nessa zona se criaria a oportunidade de Ronaldo disparar o primeiro remate na baliza, aos 12’, mas direto às mãos do guarda-redes. Também a falta para Bruno Fernandes curvar o livre que Jota se esticaria, em esforço, para desviar a bola por cima da baliza, logo a seguir. Sabiam os portugueses que por lá haveria vantagem, era ali que estava o ouro do tesouro guardada de forma tão mansa por uma Turquia que nem encostar o corpo nas receções dos jogadores portugueses conseguia.
Cada minuto parecia, também, um atestado às escolhas de quem pouco cirandava no banco e até calmo parecia estar, com a sua expressão franzida no banco. Porque ao à vontade de João Moutinho a cada bola que tinha para filtrar e à forma tão dada com que Otávio se mostrava para combinar, juntava-se a boa-nova de Bernardo Silva começar uma partida com este tipo de importância a médio centro. A vaguear pelo meio do campo, tocando na bola o mais possível, emprestando ao jogo, nos sítios onde mais se toca em decisões, uma das maiores alergias a ser desarmado que Portugal já teve. À 65.ª internacionalização, começava um jogo para jogar no meio do campo.
E com ele por lá a seleção pareceu, às vezes, estar num exercício contínuo de rabia, um acumular de vários meiinhos na passividade com que a Turquia se defendia e o abençoado canhoto do Manchester City rematou, aos 15’, uma bola ao poste, da entrada da área. Ao ricochete, o primeiro a chegar foi Otávio para a sua recarga dar o 1-0 e um deslizar de joelhos para festejar. O golo, contudo, serviria para atiçar o coração com que os turcos jogam na ponta das chuteiras e até Fernando Santos referira antes do encontro.
Eles acordaram, ativaram-se a pressionar adversários quando não tinham a bola e, durante uns 20 minutos, encostaram as tentativas de roubar portugueses à entrada da área contrária. Não eram muito organizados, nem agiam muito como um bloco, mas era o suficiente para desconfortarem as saídas de bola de Portugal, que se tornou erróneo: os centrais, sobretudo Danilo, falharam passes para os médios, que de repente tinham outros estímulos a chatearem-lhes as receções. Vieram à tona as dificuldades da seleção construir coisas ordenadamente, com bola, que não são de agora.
Duas bolas recuperadas na metade portuguesa do campo, perto da área, deram a Ünder e Kökçü remates para Diogo Costa, aos 21’ e 27’, enxotar as tentativas. Pelo meio, outra perda fez Kutlu saltar a uma bola cruzada para o costado de Dalot e, de cabeça, fazê-la passar bem perto do poste. Portugal apanhava alguns sustos, lidava mal com o aperto súbito dos turcos e expunha a pesarosa forma como a dupla de centrais acautelava o espaço que havia nas suas costas. Mas pouco duraria a reação da Turquia, que sucumbiria à gentileza que levou ao Dragão.
Voltaria à sua passividade sem bola quando a seleção, aos poucos, reaproximou Bernardo, Moutinho e Otávio do centro das suas jogadas, a elevarem trocas de passe a uma rapidez suficiente para os turcos se atazanarem nas marcações e perderem-se num novelo de combinações em que Ronaldo, sendo avançado, jogava como o avançado que nem sempre é com a camisola de Portugal — a fixar os centrais quando tinha de ser, a fugir das suas redondezas quando era preciso para os fazer duvidar, a centralizar os seus toques de bola na área, onde é sublime.
Aos 42’, com tanta gente preocupada com ele, esqueceram-se de Diogo Jota, à espera nas costas do central mais afastado da bola, que estava na calma de Otávio. Mesmo com a baliza a distância de tiro, ele picou a bola sem efeito e fê-la cair na cabeça do homem do Liverpool que não prima pela altura, mas é uma primazia de golos feitos onde o cérebro está alojado. Portugal ia a ganhar 2-0 para o intervalo e até o som do público no Dragão, em festa precoce, emanava conforto.
Também os auspícios do retorno ao jogo indicavam uma noite tranquila, uma espécie de primeira redenção do cataclismo de novembro, quando Portugal foi empurrado para aqui ao jogar pouco contra a Sérvia. Mais do que isso, ao apequenar-se perante uma arrelia do que poderia ser, do ‘e se’, mas não agora, aqui no Dragão até a segunda parte se começou por compor com uma demonstração de alguns porquês de na baliza estar a surpresa de Diogo Costa e não o hábito da escolha em Rui Patrício.
Nos pés do guarda-redes do FC Porto está uma das respostas. Ele tem-nos capazes de dar passes tensos pela relva ou fortes pelo ar, num deles isolou Diogo Jota, aos 56’, para o sardento avançado tentar um chapéu de bem longe, noutros descobriu os laterais ou Otávio para receber bolas teleguiadas. Talvez o selecionador esperasse que a Turquia se insurgisse mais contra o seu marasmo, que pressionasse mais, e aí Portugal teria uma fonte calma a distribuir a bola quando a equipa precisasse de ter mais um jogador para fugir de apertos.
Mas, pela hora de jogo, quando esse sangue bombeado pelo coração dos turcos que lhes embacia a razão, a calma ou a paciência, voltou a embalá-los, a seleção voltou a sofrer. Era impossível que não o esperasse, por muito que o adversário tivesse momentos quase de peladinha, de ter mais jogadores a passo do que a correrem para estarem num Mundial — o avançado Burak Yılmaz jamais se aproximou de Moutinho, por exemplo —, a Turquia haveria de reagir, de pelo menos tentar.
E aí, a seleção nacional foi cortês.
Com os minutos a passarem, pareceu ser incapaz de acompanhar a subida de rotação dos turcos com posicionamentos defensivos que precavessem a presença de mais jogadores adversários a entrarem, ou a aproximarem-se, da área portuguesa. Retribuiu a gentileza da passividade da Turquia, no seu próprio campo, com semelhante mansidão a condicionar as ações dos adversários com a bola. E quando eles a foram trocando lentamente até Yılmaz acordar e pedir uma tabela a Ünder, os portugueses apenas assistiram enquanto o capitão turco recebia a devolução na área (e no espaço nas costas de José Fonte) para o 2-1, aos 65’. E parecia tudo tão controlável, tão perfeitamente alcançável.
Começou então a arrelia, a velha preocupação, os turcos a carregarem com o coração nas botas e os portugueses, os que jogavam e os que assistiam, com o seu nas mãos. Fernando Santos já de um lado para o outro à frente do banco, o seu olhar carregado com toneladas de agitação. Uma seleção com jogadores absurdamente bons para controlarem jogos com a bola, seja contra quem for e deem-se os pinotes que se quiserem dar a esta evidência, não tinham forma de a terem, enquanto eram empurrados para a área de Diogo Costa, onde mais erros se veriam.
Com uma bola a meia altura, à sua frente, José Fonte pontapeou-a. Só que também acertou no pé de Enes Ünal.
O trincar de dentes na face do central que se fechou, nesse instante, foi visível nas repetições do VAR a que o árbitro recorreu para assinalar um penálti. Aos 83’, o ver se te avias em que o jogo se transformara para Portugal atingia o cume dos 11 metros, onde a Turquia podia empatar um jogo que durante tanto tempo não conseguiu, sequer, realmente jogar. Mas, no maior dos duelos que o futebol tem, Burak Yılmaz rematou a bola para a bancada e estava feita uma festa momentânea no Dragão.
Esse seria o ruir definitivo dos turcos, que se desmoronaram no que Fernando Santos previra, com certezas, que iria suceder. Dissera que eles iriam partir o jogo e arrastá-lo para transições rápidas sucessivas, foi tarde, mas assim foi, os perseguidores do prejuízo lançavam-se com tudo para a frente e esburacavam-se atrás. Para esse estado de acontecimentos entrariam Rafael Leão e Matheus Nunes, rapazes cheios de repentismo e velocidade com bola que florescem com espaço para correrem com a bola. O primeiro assistiria o segundo para o 3-1, aos 90’+4, com o jogo feito em papa.
Portugal ganharia pouco depois — João Félix teria uma oportunidade flagrante e Ronaldo, na sua segunda parte incomparável à primeira, remataria ainda à barra. Nos minutos seguintes, uma monumental surpresa se consumar-se-ia em Palermo, onde a Itália perderia nos descontos perante a Macedónia do Norte que a seleção nacional, portanto, vai receber na próxima terça-feira, no mesmo Estádio do Dragão.
De preferência, não com a mesma gentileza ou cortesia de ter uma equipa passiva a reagir, lenta a ajustar a linha defensiva para os espaços que há entre ela e a baliza ou incapaz, por momentos, de assentar o jogo na metade do campo do adversário, onde tem uma fartura de futebolistas para congeminar formas de chegar à baliza dos outros com a bola de pé para pé.
A Turquia chegou a ser banal, quase irrelevante até, mas assustou a seleção nacional e terá arreliado muito boa gente. Os hábitos são curativos de coisas várias, embora não o sejam para ver Portugal a sofrer ora mais, ora menos, ou só um pouco, mesmo quando consegue aquilo a que se propôs. Quando tudo acabou, Fernando Santos até levou um cigarro à boca.
Vem aí a final do play-off para se chegar ao Mundial do Catar e aqui pode ter sido o começo de alguns degraus trepados em termos da qualidade de jogo: ter Ronaldo mais cingido à área e a ser servido, haver Bernardo a domar as operações ao meio, com o bem-vindo Otávio perto dele, mostrou ser um bom caminho a seguir. A arrelia, seja ela maior ou menor, parece ser uma coisa muito futebolisticamente portuguesa.