Acaba de sentar o traseiro no banco verde que parece de jardim, enfia um quê da cabeça entre as pernas com os cotovelos apoiados nas coxas, é cansaço e não desalento. Nick Kyrgios tem o corpo em posição de repouso, está como se estivesse no quarto em casa e não num anfiteatro que precipita a atenção de uns dez mil olhares: ao lado da mala, deixou um par de sapatilhas tipo bota, têm o swoosh da Nike e o modelo que há décadas fabrica em nome de Michael Jordan, uma lenda aérea de outras latitudes desportivas.
O australiano é aquele tenista que põe uns calcantes para entrar no court e os descalça para realmente executar o que foi ali fazer, já é um ato cerimonioso muito seu nos últimos tempos do seu ténis, sobre o qual dizer que há potencial para muito mais é provocar chuva torrencial no molhado, quem segue raquetes, bolas, pisos rápidos e top-spins sabe o quão paradoxal é ver uma cabeça presa em Nick Kyrgios quando tanto dela lhe faltou em tantos jogos da sua curta carreira.
A forma balística e despreocupada com que arma pancadas de direita, puxando a culatra atrás sem os protocolos gestuais de quem passou por educação tenística, é também muito dele. Fosse esta uma modalidade de rua e de Kyrgios diria-se que é um tenista cheio de rua, os mísseis que dispara sem esforço para a bola cruzar o court, os winners em suspensão, os amortis feitos com a postura casual ou a marreca que veste ao chegar em esforço a devoluções são do mais cru que há. Ou a atenção agora é maior.
Há coisa de dois meses virou campeão de um Grand Slam, não sozinho, mas com Thanasi Kokkinakis ao lado, um bad boy menos bad do que ele, juntos reinaram no Open da Austrália onde este tenista refilão, rabugento e muitas vezes reprovável nas atitudes mostrou como fugir a sete pés do que é norma também é caminho desbravável para o sucesso. Desde então que ficou sossegado e não voltou a jogar até ir ao deserto onde ergueram o torneio de Indian Wells, o apelidado de quinto major.
E o australiano desbravou caminho até aos quartos-de-final, onde colide com o sempre composto Rafael Nadal, lenda ambulante das raquetes contra quem perde no tie-break (6-7) do primeiro set sendo um alquimista de muito de bom e de mau de si: martela direitas que aterram nas linhas e serve bombas indefensáveis, mas desconcentra-se com respostas tortas dadas a larachas vindas do público que até levam o árbitro a tirar-lhe um ponto.
Por vezes, estivesse Kyrgios a passear sozinho na rua e quem o observasse de esguelha duvidaria da sua sanidade.
Estando dentro do court, aceita-se o incompreensível. Ele fala constantemente com o tico e o teco, interroga-se com os decibéis em esteróides, aconselha-se, questiona-se e critica-se, faz os “let’s go”, os “yes” e os “that’s it” parecem meras vírgulas enquanto é o seu próprio amigo imaginário. Nesta sua misteriosa forma de ser tenista encontra o combustível para este jogo ser um daqueles raros vislumbres de Nick Kyrgios a lidar com o seu relógio interno, retardando a sua explosão com um ténis que verga Nadal — até um serviço por baixo e por entre as pernas ousa tentar — ao estado mais parecido com banal que é permitido chamar ao espanhol — ele vê ases passarem, não chega a bolas amansadas para a rede, é ultrapassado por pancadas cruzadas. Não tem como impedir o 7-5 com que o australiano leva o segundo set com um público extasiado a rodeá-los.
Historicamente, por costumes partilhados sabe-se lá como, as bancadas de Indian Wells também são tagarelas, cheias de gralhas que despejam migalhas de pensamentos que ninguém pediu para os ouvidos dos jogadores. Nick não gosta, vai reagindo, faz o juiz de cadeira pedir silêncio mais do que uma vez e esse palavreado ocasional entra-lhe pelo juízo, nota-se que o mói, os erros aumentam em parelha com o melhoramento de Nadal no jogo e Kyrgios sucumbe, aos poucos.
Abstração é um conceito tramado em tudo na vida e o australiano, na pequenez que o ténis representa no grande quadro do que tempo que nos é dado neste mundo, domina-o pouco em court. Quando o terceiro set já o arreliava e cometera uma dupla falta para ceder a Nadal com um serviço quebrado, não aguentou alguma provocação que lhe chegou aos ouvidos. “Estás a jogar? És bom em ténis? Precisamente, portanto estás a falar porquê?”, escutou-se o australiano a interrogar, virado para algum presente que deveria estar ali só para assistir.
No cinzentismo onde não se descortina bem o que é desconcentração, frustração ou só um tenista a ser superado por um adversário melhor do que ele, o volátil australiano acabaria derrotado num súbito desenrolar natural das coisas. Nadal foi somando pontos e Kyrgios acumulando erros, os pontos encurtados como se o jogo fosse um desequilíbrio injusto e o australiano desbaratasse para o ar à mínima bola menos bem jogada por ele. Era a sua cabeça a promover meros erros ao estatuto de tragédias dantescas.
À postura de quase indiferença que embalou no passou-bem dado ao espanhol, na rede, no protocolar cumprimento final dos adversários, Nick fez seguir uma raquete partida contra o chão, além de uns impropérios. Perdeu (6-4 no terceiro set) para a 19.ª vitória em série do melhor arranque de época de sempre de Rafael Nadal e nada de anormal há em ser derrotado pela sublimidade canhota de quem ficará nos Himalaias do ténis.
Kyrgios dirigiu-se para o seu banco e a cara que tinha posta denunciava-o: vinha aí uma fúria para ser desmoronada sobre o utensílio de trabalhou, lá foi a raquete esmagada contra o chão, entortada pela frustração. Depois, o australiano sentou-se, buscou os seus AirJordan e descalçou-se para abandonar o court calçado de outra forma. Pouquíssimos outros tenistas, se é que algum, altera o forro dos pés para calcar os metros que sobram para o levar dali para fora.
O australiano foi embora envolvido em mais apupos do que aplausos, ele a privar com ele próprio com ar de quem a tampa estava a um sopro de saltar. Vamos a meio de março e este foi apenas a terceira vez em 2022 que vimos Nick Kyrgios jogar sozinho contra muitas dos cânones de contenção do ténis. Ganhando ou perdendo, ele é entretenimento de raquete em punho e o suor que extraiu do corpo de Rafael Nadal relembrou, de novo, o grande tenista que mora nele quando o barulho das luzes do seu comportamento amainam.