Expresso

“Ele é o meu presidente”. O russo Ovechkin virou o melhor marcador europeu da NHL e já falou em “guerra”, mas ainda não abdicou da foto com Putin

Alexander Ovechkin chegou, na quarta-feira, aos 766 golos na NHL, a liga americana de hóquei no gelo onde se tornou no terceiro melhor marcador da história. Dos 41 russos que lá jogam, só ele e outro falaram sobre a Guerra na Ucrânia e, apesar de um dia ter criado um movimento chamado ‘PutinTeam’ e de ter uma foto com o presidente da Rússia a abrir o seu Instagram, fez o que no seu país já é considerado crime: chamar guerra ao que está a acontecer. Não haverá mais jogadores russos a pronunciarem-se por temerem represálias para as suas famílias

“Eu sou russo, certo?”, questiona retoricamente com o olhar bonacheirão, de gorro vermelho posto e camisola larga, o hoodie a fazer pandã com o que lhe cobre a cabeça enquanto responde ao que era uma questão de tempo ser-lhe perguntado, primeiro devido à sua naturalidade. Alexander Ovechkin constatou o óbvio, os olhos despidos de emoção e a postura hirta confirmam-no, mas não seria apenas isso e o hoquista sabia que ali era um antílope sozinho na pradaria.

O gigante barbudo, com o queixo já algo branqueado e 1,91 metros de compostura, pôs-se à mercê dos jornalistas a 25 de fevereiro, no dia à invasão da Rússia na Ucrânia que depositou no país uma guerra decidida no Kremlin, nos confins do edifício emblemático de Moscovo onde, nos seus confins, labuta Vladimir Putin, o responsável por essa decisão. E a questão surgiria sempre, porque o passado é um bumerangue. “Ele é o meu presidente, mas eu não sou um político, sou um atleta”, respondeu Ovechkin, a puxar da sucintez.

Provavelmente, ele é o mais mediático e popular jogador russo que compete na National Hockey League (NHL), onde, na madrugada desta quarta-feira, impregnou ainda mais o seu nome: fez dois golos pelos Washington Capitals na vitória, por 5-4, contra os Calgary Flames, alcançando os 766 marcados na liga americana de hóquei no gelo. O registo deixa Alexander Ovechkin na terceira posição na pirâmide de melhores marcadores da história da prova. Um jogador que já era excelso na modalidade engrandeceu ainda mais o seu legado, chegando a essa marca ao fim de menos 480 partidas em relação às que o checo Jaromir Jagr, anterior ocupante desse lugar no pódio, precisou para atingir a marca.

O russo, de 36 anos, vai com 1.253 jogos em 13 temporadas a perseguir discos fugitivos no gelo na NHL, o melhor campeonato de hóquei no gelo que há. “É um momento muito fixe, é sempre bom saber deste tipo de marcos e números [na carreira]”, admitiu o capitão dos Washington Capitals, findo o primeiro jogo que fez longe da cidade que alberga a Casa Branca desde que teve de se pronunciar sobre o que se está a passar na Ucrânia — porque já muita pressão e exigência havia para o fazer.

O novelo de motivos para se querer ouvir a voz de Ovechkin começa na porta de entrada da sua página de Instagram, onde hoje tudo quanto é atleta se apresenta ao mundo. Na foto principal, o russo está com toda a sua altura ao lado de Vladimir Putin, cujo o cocuruto nem alcançava o nariz do hoquista que, com a mão esquerda, gesticulava um símbolo de ironia póstuma: os dedos indicador e médio em forma de ‘v’, fazendo um dos mais comummente utilizados sinais de paz no mundo, ainda por cima apontado ao presidente que decidiu invadir outro país.

A sua relação com Putin tem sido discutida desde o eclodir da guerra na Ucrânia, mas, da única vez que falou, ao leve, sobre o assunto, Ovechkin foi parco. “Não quero ver ninguém a ser magoado ou morto, espero que possamos viver num mundo bom. É algo que não posso controlar, não está nas minhas mãos. Espero que tudo acabe depressa e que haja paz em ambos os países”, disse, expressando-se com frases curtas e repetitivas na conferência de imprensa. Estivesse ele algures na Rússia e o que disse depois poderia arranjar-lhe problemas com as autoridades.

Mesmo soltando pouco, criticando quase nada e comprometendo-se ainda menos com o que fosse, o jogador russo deixou um apelo para, “por favor, pararem com a guerra”, explicando que “não importa quem está na guerra, se a Rússia ou a Ucrânia, temos de viver em paz no mundo”.

Foto: MIKHAIL KLIMENTYEV/POOL/AFP via Getty Images

Saiu-lhe a palavra que o governo do Kremlin não usa, além de “invasão”, para definir o que abateu sobre a Ucrânia — prefere chamar-lhe “operação militar especial” — e pode vir a constituir um crime: na sexta-feira, o parlamento russo (Duma) aprovou um decreto-lei que tornou punível com pena de prisão até 15 anos quem seja acusado e condenado de espalhar “falsas informações”, além de bloquear o acesso ao Facebook e a sites de órgãos de comunicação em língua russa, sediados fora da Rússia.

O decreto seria assinado por Vladimir Putin, a figura que levou o hoquista, em 2017, a envolver-se num movimento para “unir pessoas orgulhosas do seu país e que querem tornar a Rússia mais forte”. De seu nome “PutinTeam”, os apoiantes declaravam “valorizar a confiança, o respeito, a justiça e a retidão” do presidente “pelo seu povo”, além do “facto de realmente se preocupar” com as pessoas. Foi mais ou menos nessa altura, quando se contavam quatro anos da ocupação da península da Crimeia por tropas russas e Putin concorria a mais uma eleição presidencial, que Alexander Ovechkin colocou a sua atual foto de perfil no Instagram.

Depois, entre cumprimentos trocados com Putin em eventos de hóquei no gelo, onde o líder russo se equipava com a armadura, pegava no stick e calçava as botas laminadas em jogos amigáveis para lhe estenderem autoestradas e ele marcar golos, o teor da relação de Ovechkin com o presidente foi sendo uma incógnita. Havia, sim, um russo que era um dos maiores atletas da modalidade a praticar o seu ofício na capital americana. Apesar de todas estas associações de proximidade, apenas um outro dos 41 hoquistas nascidos na Rússia e a competirem nos EUA se pronunciou sobre a Guerra na Ucrânia.

Mais jogadores não o fazem por temerem represálias para os seus familiares que estão na Rússia, explicou à “NBC” o agente Dan Milstein, que representa vários hoquistas russos e bielorrussos da NHL. “Tem sido difícil. Alguns encontram um refúgio quando pisam o gelo e jogam, mas conseguem imaginar o que é competir enquanto pensas na tua mulher e filho recém-nascido, que estão em casa, desprotegidos?”, explicou, dando ainda conta de que muitos estão a ser assediados com mensagens nas redes sociais, simplesmente por serem russos.

O próprio Aleksander Ovechkin abreviou que tem “família na Rússia e são momentos assustadores”, sugerindo, com a sua ténue amostra de afastamento público de Vladimir Putin, o quão funambulistas à procura de um equilíbrio os atletas russos, que compitam fora do país, têm de ser hoje em relação ao que dizem sobre a Guerra na Ucrânia — enquanto muita gente lhes pedem que digam algo. “Estamos preocupados com o bem-estar dos jogadores russos, que jogam na NHL em nome dos clubes e não da Rússia”, revelou, em comunicado, a liga americana de hóquei no gelo: “Sabemos que eles e as suas famílias estão a ser colocados numa situação extremamente difícil”.

O capitão dos Washington Capitals será um dos que está a sentir as ondas de choque de quem agora anda a agitar o passado de atletas russos na internet, onde nada se perde e tudo se transforma para um dia ser relembrado, como a imagem que Ovechkin partilhou, em outubro de 2018, de Putin com um casaco militar e óculos à aviador, dando-lhe a seguinte legenda: “Caro Vladimir Vladimirovich! Feliz Aniversário! Desejo-lhe muita saúde, bondade, paz e prosperidade! Muita felicidade para você, a sua família e os seus amigos”.