O malandreco filho ainda sondou a progenitora, questionou se poderiam ir a uma prova na Flórida, península no lado oposto dos EUA onde eles viviam na Califórnia e a mãe torceu o nariz à ideia, dizia ser longe, custar demasiado dinheiro e ter já muitos homens, não só adolescente, a levarem a missão de serem surfistas profissionais mais a sério. Kanoa Igarashi tinha 13 anos e seria a primeira competição do circuito Pro Júnior americano, mas ele fintou a recusa da mãe: nessa noite, quando os pais dormiam, surripiou-lhe o cartão de crédito e pagou a inscrição na prova, marcou os voos, o hotel e tudo mais de logística lá irem.
Claro que a matriarca Igarashi perdeu um pouco as estribeiras, não gostou da insolência do filho, contou ele há uns anos à revista “Outside”. A família iria ao tal evento onde, pela primeira vez, sentiu as bigornas de pressão. Disse-o antes de ir ao Japão ganhar a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos — na praia de Shibuya, a cerca de uma hora de Tóquio, onde o pai e amigos foram os primeiros a desbravarem essa onda —, mas quando já era colecionador de algumas vitórias no Championship Tour. Desiludir os pais depois de ir contra o aval proferido pela mãe valeria a pena: Kanoa ganharia essa primeira prova em que participou e reverteu os 8 mil dólares de prémio para a família.
O seu primeiro nome é o equivalente, em havaiano, a “livre” e assim se sente o surfista que chegou a Peniche no segundo lugar do ranking mundial. Não foi bem chegar, foi voltar. Kanoa Igarashi é proprietário de uma casa na Ericeira, onde não é de agora que passa algumas temporadas por ano a treinar para outras aventuras e a limar o português que fala impecavelmente, com um sotaque adornado por expressões (“tinha pica”, “já me faz o dia”, “ando sempre a mil”) que denunciam as raízes alastradas em Portugal por este japonês nascido nos EUA. Tem cá amigos, rotinas, confortos, além de objetivos que poucos acharão descabidos.
O japonês diz com o seu sotaque que existe para tentar ser a sua melhor versão possível de surfista e o melhoramento tem sido descarado, porque quando alguém é vice-campeão de uma etapa do circuito mundial na praia de Sunset, no Havai, numa onda que garante “detestar”, algo especial se estará a passar. Kanoa só tem 24 anos. Estando nos quartos-de-final do Meo Pro Portugal (depois de eliminar Frederico Morais) e dançando com resultados alheios, acordou este domingo na liderança virtual do circuito mundial. Poderá sair de Peniche vestindo a licra amarela da liderança e não é, de todo, descabido se o virmos daqui por uns meses a fazer-se às derradeiras ondas da temporada para poder ser campeão do mundo.
Disseram-me que não gostas da onda de Sunset e, mesmo assim, saíste de lá com um 2.º lugar.
Pois, eu detesto. As pessoas acham que só porque tive um bom resultado agora vou gostar da onda.
Detestar não é demasiado forte?
É uma onda muito difícil, simplesmente. Achava que não era muito boa para o meu surf, é muito tricky, nunca consegui ler muito bem a onda, já fiz lá bons resultados, mas é sempre muito frustrante. Ainda bem que correu bem, pronto. Já me aconteceu várias vezes ter bons resultados em ondas que não gosto muito, acho que tem a ver com ter poucas expetativas.
Quando vais para um campeonato numa onda dessas, sentes que te afeta o quê? A motivação?
Não é não gostar, no caso de Sunset, não a acho muito divertida, é um bocadinho mole, especialmente quando temos Pipeline ao lado, por mim surfava lá todos os dias, é a melhor onda da North Shore [costa norte da ilha de Oahu, no Havai]. Dormiria melhor à noite se soubesse que ia lá surfar no dia seguinte, sentes bem o power da onda. Fico com menos ansiedade quando sei que vou competir em Pipe. Mesmo assim, Sunset claro que é das melhoras ondas do mundo.
Onde é que colocas Supertubos nesse teu ranking?
No top 5, também é das melhores. Eu amo surfar aqui em Peniche e não é por já ter tido bons resultados, é por já ter passado aqui muito tempo. Quando vejo as previsões e está uma ondulação grande, com vento norte, venho para aqui. Sinto muito prazer não só a competir, mas sempre que venho cá surfar.
E a onda de Tsurigasaki, no Japão, onde ganhaste a medalha de prata?
Por acaso, também acho uma onda muito difícil e que não era boa para o meu surf, mais uma. Sentia-me muito confiante, pensava antes dos Jogos Olímpicos que ia arranjar alguma forma de ganhar e passar heats, e foi mesmo assim. A onda era complicada, mas consegui adaptar-me bem.
É verdade que os teus pais foram dos primeiros a desbravar essa onda?
Foi o meu pai que descobriu com os amigos na altura, há não sei quantos anos. Hoje em dia, também para mim é um sítio não só para competir, mas onde consigo estar com amigos, com o meu irmão ou com o meu pai e depois ir ao café beber um chá ao fim da tarde. Quando o meu pai e a minha mãe se conheceram, era um sítio onde combinavam encontrar-se, era ali mesmo, por isso é que a onda é especial para mim e para a minha família.
Quando estavas na barriga da tua mãe, eles mudaram-se para os EUA com a ideia de teres condições para um dia seres surfista profissional. Achas que eles estavam mais nervosos do que tu durante os Jogos Olímpicos?
Sim, acho que sentiam tudo. Aliás, nessa semana, eu senti nas mensagens dos meus pais que eles estavam mesmo tensos. Conheço bem os meus pais, sei quando estão nervosos e senti-os muito on edge. Saber que eles e os meus amigos estava assim fez com que ficasse ainda com mais pica para ganhar, mais vontade. Acho muito engraçado e gozava com os meus pais quando eles ficavam nervosos antes dos meus heats, dizia-lhes sempre que não valia a pena e que assim ia morrer mais cedo, por causa dos nervos [ri-se] — “Eu vou competir para o resto da minha vida, não podem estar assim sempre”. Até lhes disse que não queria competir em mais outros Jogos Olímpicos, senão eles iam ficar com problemas de saúde, porque vão entrar em pânico. Mas sim, sobretudo é divertido.
Qual é a sensação de te colocarem uma medalha de prata ao pescoço? É ingrato ou feliz?
É um bocadinho de tudo. Logo na altura fiquei mesmo triste, e acho que fiquei triste durante uma semana, mas, aos poucos, comecei a perceber que trazer uma medalha não só para o país, também para a minha família, foi uma coisa enorme. O meu pai disse que ganhei a medalha, não perdi o ouro. Claro que sei que fiz um bom resultado, mas o competidor em mim quer sempre mais. Mesmo assim, acho que ainda estou não a recuperar, mas de ressaca de ter perdido.
Como é que lidas com isso psicologicamente?
Vem-me à cabeça quando estou em prova, penso que deveria ter feito isto ou aquilo, que poderia ter apanhado aquela onda, mas, ao mesmo tempo, vêm-me os momentos em que mostrei a medalha à minha avó e ela começou a chorar. Foram esses momentos que me ficaram mais na cabeça, ver também os meus pais a chorarem quando fiz um aéreo nas meias-finais, essas imagens agora vêm-me muito mais do que as da altura em que perdi.
O Japão não é dos países mais ligados ao surf. Que tipo de reações foste recebendo?
Não dá bem para explicar por palavras o que aconteceu no nosso país. Não é só no surf, é nos Jogos Olímpicos no geral, tivemos muitas medalhas de ouro e bons desempenhos numa fase em que o Japão estava muito em baixo por causa da covid-19, vi muitos comentários e muitas mensagens que me chegavam pelo Instagram, ou por amigos, percebi que tudo aquilo deu ânimo às pessoas. Nós estávamos a precisar disto. E só o facto de receber uma mensagem dessas já me faz o dia.
Nasceste na Califórnia, competes pelo Japão, tens casa na Ericeira e já há uns anos que passas algumas temporadas cá em Portugal. Nunca páras quieto.
O meu nome, Kanoa, em havaiano significa “livre” e é isso que eu sinto. Graças a Deus que tenho esse estilo de vida e consigo fazer o que quero, desde criança que queria ter essa liberdade e os meus pais sempre me apoiaram muito nessa decisão. O meu objetivo principal é ser o melhor surfista que conseguir ser, chegar ao topo do meu nível. E acho que o melhor para mim é estar em Portugal a treinar, como às vezes penso que é melhor ir para a Austrália durante um mês, ou ficar no Havai durante dois meses. É consoante o que sinto que o meu surf precisa para ir atrás de ser o melhor surfistas do mundo. Mas sim, ando sempre a mil.
Ou seja, os teus pais vão continuar a ‘morrer’ aos poucos de nervos enquanto não fores campeão do mundo.
[Ri-se] Espero que não! Acho que cada vez mais estou a melhorar e quando mais conseguir ganhar, menos eles ficam ansiosos. A minha mãe hoje até me disse que anda mais relaxada este ano, porque eu ando a começar melhor os heats e já várias outras pessoas me disseram o mesmo. Antes, eu só entrava mais tarde nas baterias, deixava os outros apanharem as ondas e só depois é que reagia. A minha mãe disse que gostava da nova tática, de começar rapidamente.