As lágrimas de Kamila Valieva foram uma das imagens dos Jogos Olímpicos de Inverno, no mês passado. A patinadora russa de 15 anos, máquina de fazer saltos quádruplos e para muito boa gente a melhor atleta a alguma vez pisar os rinques de patinagem artística, chegou a Pequim com o rótulo de prodígio estampado nos patins e logo na prova por equipas tornou-se na primeira mulher a aterrar um salto com quatro voltas numa competição olímpica.
Mas depois veio a queda. Metafórica e literal. Poucas horas depois de ajudar o Comité Olímpico da Rússia a agarrar o ouro na prova coletiva, a jovem nascida em Kazan recebeu a notificação de um positivo a trimetazidina, uma substância utilizada no tratamento da angina de peito e que está proibida na prática desportiva. O teste foi feito no final de dezembro, mas só durante os Jogos Olímpicos o resultado foi conhecido.
Começou então uma longa novela que culminou com o Tribunal Arbitral do Desporto a permitir a Valieva participar na prova individual, onde era mais que favorita. Por ser menor, a investigação foi alargada ao seu entorno, nomeadamente à sua polémica treinadora, Eteri Tutberidze, e aos médicos da seleção russa, com o TAD a considerar que excluir a jovem lhe poderia trazer “danos irreparáveis”.
Danos esses que talvez já estivessem feitos. Com a pressão do mundo e os olhares desconfiados em cima dos ombros, Valieva iniciou o programa livre nervosa e terminou-o em lágrimas, depois de não conseguir completar a maioria dos complicados elementos que se proponha apresentar – e que o público esperava como quem espera um espectáculo de ballet – ao som do “Bolero” de Ravel. E aquela medalha de ouro que lhe parecia destinada, transformou-se em algo tão insignificante quanto os resíduos de gelo que saem das laminas dos patins a cada salto: ficou em 4.º lugar, fora do pódio, vendo as colegas Anna Shcherbakova e Alexandra Trusova ficarem com ouro e prata.
O pranto de Valieva foi dissecado ao pormenor nos dias seguintes. Não faltaram acusações de falta de empatia a Tutberidze, até do próprio líder do Comité Olímpico Internacional, Thomas Bach. Os métodos draconianos da implacável treinadora foram questionados e o futuro das atletas também. Com 15 anos, Valieva poderá já ser demasiado veterana para os próximos Jogos Olímpicos, mas não o seria para os Mundiais de patinagem artística, que arrancam a 21 deste mês, em Montpellier, França. E estava aqui a oportunidade de Valieva se voltar a levantar.
Mas entretanto, a Rússia invadiu a Ucrânia.
Se inicialmente a federação de patinagem russa manteve os planos de participar nos Mundiais, o comunicado de segunda-feira do COI, que recomendava que todos os atletas russos fossem impedidos de participar em competições internacionais, foi o fim de linha: não haverá redenção para Kamila Valieva, que iria tentar em França o seu primeiro título mundial, com a ISU, federação internacional de patinagem, a anunciar esta terça-feira que todos os atletas e oficiais russos e bielorussos estão impedidos de participar em provas até ordem em contrário – em linha, aliás, com quase todas as federações e competições desportivas.
“Seguindo a recomendação do COI, de forma a proteger a integridade das competições de patinagem no gelo e a segurança de todos os participantes nessas competições, o conselho da ISU (…) concordou, com efeitos imediatos e até nova ordem, que nenhum patinador pertencente à Rússia e Bielorrússia será convidado a participar em provas internacionais, incluindo campeonatos e eventos da ISU. O mesmo se aplica a oficiais”, pode ler-se no comunicado do organismo.
A Rússia ainda não tinha anunciado a sua equipa para os Mundiais de patinagem artística, mas a decisão afetará seguramente também Anna Shcherbakova (que é campeã mundial em título) e Alexandra Trusova – com Valieva são conhecidas como a “Quad Squad”, praticamente imbatíveis em dias que não os dias que Valieva teve de lidar em Pequim. Os atletas do Comité Olímpico da Rússia venceram ainda medalhas nos Jogos Olímpicos nos pares (Tarasova e Morozov foram prata e Mishina e Galliamov bronze) e na dança (prata para Sinitsina/Katsalapov). A equipa russa foi também campeã olímpica na prova por equipas, mas as medalhas ficaram por entregar, até se concluir a investigação ao positivo de Valieva.
No comunicado, a ISU reitera “a solidariedade com todos os afetados pelo conflito na Ucrânia”, reafirmando ainda a “solidariedade com todos os membros da ISU” no país, estando a avaliar “assistência humanitária” para estes atletas e oficiais.
“O conselho da ISU vai continuar a monitorizar a situação na Ucrânia e o seu impacto, tomando ações adicionais se e quando necessário”, sublinha ainda a comunicação.