Expresso

Aqui estamos, com sonhos gelados do país sem neve

José Cabeça, Vanina Oliveira e Ricardo Brancal representarão Portugal nos Jogos Olímpicos de inverno, que arrancam esta sexta-feira, em Pequim, com a cerimónia de abertura

Estamos em fevereiro de 2018. José Cabeça, de 21 anos, está sentado em frente à televisão, na sua casa em Évora. O aparelho mostra-lhe imagens vindas de Pyeongchang, na Coreia do Sul, onde decorrem os Jogos Olímpicos de Inverno. E o alentejano, que “desde pequeno tinha o objetivo de ir a uns Jogos”, viu na prova de esqui de fundo “uma boa oportunidade” para satisfazer essa ambição. “Era um desporto que necessitava de muita preparação física, o que era bom para mim”, diz José, sem fazer referência a um grande pormenor: vivia numa zona onde esquiar soa a algo semelhante a ir à Lua.

“Sem ter qualquer conhecimento técnico”, Cabeça enviou um e-mail à Federação Portuguesa de Desportos de Inverno com uma mensagem simultaneamente simples e ambiciosa: “Pedi ajuda para saber o que era preciso para começar a praticar esqui de fundo, porque queria ser o atleta que representaria o nosso país nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2022.”

Quatro anos volvidos, o eborense faz parte da comitiva portuguesa que estará nos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim, na 24ª edição da prova, a qual fará da cidade chinesa a primeira na história a ter acolhido as versões de verão e de inverno da maior concentração desportiva global. Além do alentejano, Portugal estará representado por Vanina Oliveira, luso-francesa com raízes em Guimarães, e pelo covilhanense Ricardo Brancal.

País com escassa tradição neste tipo de desportos, até 2022 só 13 atletas — 11 deles homens — tinham representado Portugal nos jogos da neve e do gelo. Curiosamente, a primeira mulher a competir pelas cores nacionais foi também quem conseguiu a melhor classificação portuguesa de sempre: Mafalda Queiroz Pereira foi 21ª no esqui estilo livre em Nagano, 1998. No passado recente, as pequenas delegações têm sido maioritariamente compostas por lusodescendentes. Com efeito, Ricardo Brancal e José Cabeça são os dois primeiros atletas nascidos em Portugal a irem a uns Jogos de Inverno no presente século.

“O que é que este maluco está a fazer?”

Antigo praticante de karaté, futebol e natação e ainda hoje atleta de triatlo, José Cabeça, licenciado em Treino Desportivo pela Universidade de Rio Maior, admite que a sua ideia foi “totalmente inesperada”, resumindo a reação geral e contando a resposta da sua “maior apoiante” quando soube do seu objetivo: “A minha mãe questionou-me ‘oh, filho, porquê? Já fazes tantos desportos… Nós nem temos neve’”, recorda.

Indiferente à descrença alheia e ao facto de “no Alentejo ser impensável fazer algo relacionado com a neve”, José começou, em 2019, a fazer roller ski, ou esqui com rodas, uma vertente de verão. Pelas estradas e caminhos de Évora, o jovem ia “aperfeiçoando a técnica vendo vídeos, sem treinador”, à medida que “ouvia todo o tipo de reações, desde pessoas a apitarem” por José estar na estrada até “outras a darem apoio”: “Acredito que o pensamento geral fosse ‘este rapaz é maluco, o que é que ele está a fazer?”’

Vanina Oliveira Guerillot nasceu em França, filha de mãe portuguesa (Foto: JONATHAN NACKSTRAND/AFP via Getty Images)

E garante que não decidiu “começar no esqui porque era engraçado, mas sim totalmente focado nos Jogos de 2022”. Mas para chegar a Pequim viver no Alentejo era uma limitação evidente. Por isso pegou no carro nas primeiras horas de 2020 e rumou a França. “A primeira vez que esquiei foi a 4 de janeiro de 2020”, lembra alguém que, dois anos depois, compete entre os melhores.

Em França encontrou nova dificuldade, já que não conseguiu arranjar treinador, pois “nenhum queria trabalhar com um atleta com objetivos tão elevados e um nível tão baixo”. Ele próprio o reconhece: “Eu, simplesmente, não sabia esquiar. Foi do zero. Treinei sozinho lá durante dois meses, até começar a pandemia.”

A covid-19 levou-o a aceitar uma oferta de trabalho no Dubai, para ser personal trainer de uma pessoa que Cabeça descreve como “o patrocinador principal” da sua carreira desportiva. Uma “espécie de anjo da guarda”, sem o qual “isto seria impossível”, na medida em que a família de José “não tem capacidade financeira para este tipo de investimento”.

O alentejano foi “sempre melhorando a técnica” — voltando aos esquis com rodas no Médio Oriente —, mas a pandemia ia-lhe fechando portas rumo a Pequim. Para chegar aos Jogos era preciso estar no Campeonato do Mundo de esqui nórdico, na Alemanha, contudo a qualificação “não estava fácil, porque todas as provas eram canceladas”. Até que a oportunidade surgiu num evento na Suíça, em dezembro de 2020.

Competindo “com um par de esquis que estavam partidos”, José conseguiu assegurar o bilhete para a Alemanha “na única oportunidade” de que dispôs. A prestação que teve no Mundial abriu uma vaga olímpica para Portugal, a qual foi depois confirmada num conjunto de provas na Sérvia.

Para ultimar a preparação para os Jogos, José foi, em dezembro, para a Noruega. E se há pouco tempo não conseguia arranjar treinador, agora trabalha com “um dos melhores do mundo”, Ragnar Bragvin, pentacampeão do mundo de roller ski. O português refere ao Expresso que há “treinadores na Noruega que perguntam como foi possível alguém melhorar tanto tão rapidamente”.

O mestre da serra

Para os dois outros portugueses que estarão na China — além de Pequim, os Jogos disputar-se-ão também em Yanqing e Zhangjiakou — a neve sempre foi algo mais natural: Ricardo Brancal nasceu na Covilhã; Vanina Guerillot de Oliveira, filha de mãe portuguesa, veio ao mundo em Grenoble, nos Alpes Franceses, vivendo “no sopé das pistas de esqui de Saint Hilaire de Touvet”, como nos conta o seu pai, treinador de esqui “há 30 anos” e também técnico de Vanina.

Licenciado em Ciências Biomédicas pela Universidade da Beira Interior e mestre em Engenharia Biológica pelo Instituto Superior Técnico, tendo ainda uma pós-graduação em Business Management no ISEG, Brancal conjuga o desporto com os estudos, porque “exercitar a mente é importante”. Apesar de ser covilhanense, só esquiou “pela primeira vez na serra da Estrela com 12 anos, tendo feito a iniciação aos três ou quatro anos nos Pirenéus Franceses”. “Começou por ser uma brincadeira de férias, mas fui aumentando a dedicação a cada ano.”

Brancal nunca fez muitos treinos na serra da Estrela, confessando que quando estava a tirar o mestrado em Lisboa ia à serra Nevada esquiar. “O problema é que neva pouco na serra da Estrela”, diz. Ricardo explica que “para o nível de iniciação, a serra tem capacidade para desenvolver atletas”, mas que depois tudo se complica, até porque “não temos uma pista homologada para competições da Federação Internacional de Esqui”. O covilhanense sempre apresentou “um bom nível” em provas internacionais, mesmo quando só esquiava “20 a 30 dias por ano, competindo contra quem treinava 250 dias anualmente”.

Para suprimir esta lacuna, Brancal decidiu, em 2020, rumar a Itália, para treinar numa academia em Alta Badia, integrando “uma equipa com pessoas experientes em campeonatos internacionais”, momento que descreve como “o grande salto” da carreira. A treinar ininterruptamente desde agosto, Ricardo passa “quatro horas diárias em pista”, às quais acresce a “importante preparação mental”.

Ricardo Brancal treina em Itália desde 2020 (FOTO: FABRICE COFFRINI/AFP via Getty Images)

Vanina também representa Portugal desde adolescente. O seu pai, Yannick, conta ao Expresso que a filha, apesar de não falar português, “costumava ir sempre em agosto, com a mãe, a Atães, em Guimarães”, visitar a família, num hábito que tem sido quebrado “devido à pandemia”. Yannick queixa-se dos “poucos apoios”, ponto comum aos três atletas.

Brancal vinca que o “esqui alpino é bastante caro, podendo ser comparado ao desporto motorizado, por envolver um grande investimento financeiro”. E “não ignora o esforço da Federação e do Comité Olímpico de Portugal [COP]”, mas “faltam ­apoios privados”: “Eu tenho uma grande ajuda, que são marcas que fornecem equipamento, mas para chegar a um nível mais elevado são precisos outros patrocínios.” Ricardo e José Cabeça colocam o seu futuro nos desportos de inverno dependente dos apoios financeiros que obtiverem.

Quanto a resultados, reina o otimismo. O pai de Vanina confessa que a preparação da filha foi “complicada” devido a “um problema nas costas”, mas acredita num lugar “entre o 20º e o 40º”. Já Brancal recorda que Arthur Hanse conseguiu ficar em 38º em 2018, “pelo que tentar igualar essa marca seria fantástico”. José Cabeça diz que “um lugar a meio da tabela seria incrível” para quem “só tem quatro meses de neve na vida”.

Yannick Guerillot espera que a sua filha possa “inspirar outras jovens, porque há muitas portuguesas que fazem esqui um pouco por todo o mundo” e que podem ver em Vanina um modelo a seguir. Brancal refere que “os Jogos começaram por ser um sonho, tornando-se depois um objetivo”. “É muito bom que se saiba que é possível alguém que viveu quase sempre em Portugal representar o país nos Jogos de Inverno”, comenta.

Aos 17 anos, um grave acidente durante a prova de ciclismo num triatlo fez José Cabeça partir a clavícula e duas vértebras, impossibilitando-o de andar durante um mês. Os três primeiros médicos a que foi opinaram que “nunca mais poderia fazer desporto de alta competição”, até que Gomes Pereira — hoje médico do COP — lhe disse que “seria difícil, mas possível”. “Para mim isso é mais do que suficiente. Só preciso que seja possível. Se for, eu farei o que for necessário para tornar o possível em realidade”, garante o embaixador do Alentejo às montanhas nevadas do mundo.