UEFA Euro 2024

Se temos a bola e estamos organizados, atacamos em 3-2-5: a moda tática que o Europeu veio confirmar no futebol de seleções

As equipas que estão nos quartos de final do Europeu têm uma semelhança transversal entre elas: quando têm em bola e no que se chama de organização ofensiva, todas constroem jogadas a partir de uma primeira linha com três jogadores. A tendência não é nova, mas tem saído reforçada neste torneio. Uma das explicações, ajuda Tomás da Cunha, é “a forma como o futebol, nos últimos 10/15 anos, se transformou num duelo constante entre a saída curta, ou elaborada, e a tentativa de pressionar alto para forçar erros”. E Portugal com Roberto Martínez nunca fugiu a esta ‘moda’

Inaki Esnaola/Getty

Para quem assiste ao Europeu à distância, seja com o traseiro no conforto do sofá ou no amparo mais formal de uma cadeira posta à secretária, a TV pela qual chegam os jogos tem mostrado, ocasionalmente, a face quadrangular e enrugada de Fabio Capello na bancada, ou a grande angular dos olhos azuis de Ole Gunnar Solskjær, sempre com eles abertos como quem tem os faróis máximos ligados no carro. Se não o italiano e o norueguês, porventura apareceu a cara de Rafael Benítez e a sua barba em pêra, ou, caso não tenha sido o espanhol, então talvez as câmaras optaram por focar o grisalho David Moyes, escocês a quem o típico ar de espanto não cessa de dar companhia. É provável que estes quatro ou algum dos restantes oito treinadores que andam pelos jogos do Euro 2024 apareça amiúde na transmissão televisiva, já que por lá andam ao serviço da UEFA.

Estão incumbidos de serem observadores técnicos do torneio e de escolherem, no final da cada partida, o melhor jogador em campo, competência imediata que só faz cócegas na superfície das suas tarefas de escreverem relatórios de jogo e analisarem taticamente as seleções. Como resume Solskjaer, “é uma forma incrível de analisar equipas de topo e nos mantermos a par das tendências”. Quando terminou a fase de grupos e os respetivos 36 encontros, a UEFA publicou um breve apanhado das conclusões algo generalistas desses tais especialistas. Uma delas, a que chamaram “box midfield” ou “meio-campo quadrado”, evidenciou não exatamente uma tendência, mas a consequência de uma delas, espécie de moda que as seleções deste Europeu abraçaram sem cerimónia e será especialmente visível nos quartos de final do torneio.

A de as equipas montarem um 3-2-5 quando têm a posse de bola e quererem avançar no campo até à área adversária.

É o que faz a enfadonha Inglaterra de Gareth Southgate, com o lateral direito Kyle Walker a juntar-se aos dois centrais na fase a que, em futebolês, se chama organização ofensiva, para o lateral oposto se projetar, com semelhanças aos Países Baixos que aproximam Nathan Aké, da esquerda para o meio, de modo a Dumfries, pela direita, ter liberdade para atacar. Também é meio que costume na seleção de França, que para usufruir da veia atacante de Theo Hernández, lateral esquerdo que prima por atacar, muitas vezes mantém Jules Koundé, um central de origem, perto dos outros dois centrais - apesar de nos ‘oitavos’, contra os belgas, a equipa ter largado um pouco esse molde, fazendo avançar ambos os laterais para obrigar os extremos adversários a acompanharem e deixando Tchouaméni, o ‘6’, a ser quem magicava o início das jogadas com Saliba e Upamecano. A Suíça oleada pelo técnico Murat Yakin também aproxima Ricardo Rodríguez, lateral canhoto já não dado a grandes correrias, às imediações dos centrais quando a seleção se organiza para atacar.

Espanha tem o omnipresente Rodri, provavelmente o médio mais influente por estes dias a ordenar o jogo logo por diante dos defesas, próximo dos centrais em organização ofensiva. Caso mais especial é o da Alemanha, onde os laterais a defender, Kimmich e Mittelstädt (ou Raum), viram alas com posicionamentos mais subidos no relvado para um certo médio totémico no trato da bola recuar, assumindo uma posição, por norma, como suposto central pela esquerda e dali mandar em tudo. A par da sorte em ter Toni Kroos a reger as direções de todas as jogadas, a velocidade da troca de bola e o ritmo dos passes no jogo germânico, Julian Nagelsmann dá outra variação ao jogar germânico por assumir uma pequena estrutura de 3+1 (os três jogadores da primeira linha, mais Robert Andrich, o médio que sobra, à frente), confiando que as benesses de dar o volante da bola a Kroos superam o risco que é deixar apenas um jogador no centro do campo para acautelar os momentos em que a Alemanha vai perder a bola e terá de correr para trás.

Um treinador de I Liga em Portugal ajuda a explicar, embora prefira fazê-lo anonimamente, os porquês de as equipas estarem cada vez mais a organizarem-se nesta estrutura base, quando têm a bola, com uma primeira linha com três jogadores: “A maioria das equipas pressiona com dois jogadores na primeira linha de pressão, então, se há dois, escusas de gastar quatro na tua primeira linha e ficas só com três, e já estás com superioridade. Se, depois, metes dois por trás da primeira linha adversária é tramado para eles fecharem porque tens de assumir que terás ali dois jogadores a tapar os espaços e vais perder gente atrás, perto do setor defensivo, assumindo que queres pressionar.”

Resumindo, se a preferência de grande parte dos treinadores é montar equipas que, sem a bola e quando o adversário tenta sair da sua área, pressionem com dois jogadores, basta ter mais um homem nessa saída com a bola para criar uma superioridade numérica - um dos propósitos maiores do futebol e a forma mais elementar de forçar uma situação vantajosa para atacar a baliza.

Marvin Ibo Guengoer - GES Sportf

O caso português

Voltando ao apanhado tático que a UEFA fez das opiniões dos seus observadores, no box midfield em que “as equipas normalmente se organizam em 3-2-2-3”, portanto uma variante do 3-2-5, é dado o exemplo do que faz Portugal para “ter jogadores confortáveis a receber a bola em posições mais avançadas do campo”. Uma das maneiras de montar a primeira linha com três jogadores é mover um dos laterais para o meio-campo e, na seleção nacional, desde há muito que João Cancelo é o tipo preferido para o fazer.

Lateral de excelência a atacar a partir do corredor, apetrechado de técnica e agilidade que lhe tornam fácil livrar-se de adversários individualmente ou a combinar com alguém (a sua parceria quase telepática com Bernardo Silva, pela direita, provoca muitos desequilíbrios no adversário), Cancelo tem sido um falso lateral quando a seleção tem a bola ao longo dos 19 jogos da era Roberto Martínez - de modo a procurar ter superioridade numérica no meio-campo, o treinador incumbe-o de deambular para zonas mais centrais, onde pede bola entre linhas e de costas para a baliza. Se isso beneficia mais a seleção do que a prejudica, ou se compensa a Portugal ter um João Cancelo que é um bom médio em detrimento de sair dos pedaços de relva onde é um grande lateral a atacar, é discutível.

A seleção nacional chega à situação em que Cancelo tem ordens para se imiscuir no meio-campo em organização ofensiva independentemente de, sem a bola, se dispor em campo com três defesas centrais ou apenas dois. “A forma como chegas aos 3-2-5 é muito variável”, constata o treinador a que a Tribuna Expresso pediu ajuda. O caso da Alemanha com Toni Kroos é a solução mais fora-da-caixa, as de Portugal mais esquemáticas: “Podem ser os três centrais com alas por fora, dois médios centro e dois médios ofensivos ou extremos por dentro, como lhes quiseres chamar; ou então pode ser com um dos laterais a ficar por dentro para construir com os centrais e o outro lateral sobe e faz de extremo, como a Itália chegou a fazer; as formas são sempre diferentes e os desdobramentos defensivos também.”

Há quem defenda com a linha de cinco, outros com linha de quatro, a seleção nacional já fez ambas. Contra a Chéquia e Geórgia começou com três defesas centrais e, no primeiro jogo, Nuno Mendes foi um deles, lateral de origem para ser alguém que levasse a bola para a frente, progredisse em condução, atraísse a pressão e tentasse mover adversários a saírem-lhe ao caminho para libertar espaços nas suas costas. É uma outra forma de procurar criar uma vantagem. No último encontro da fase de grupos, houve três centrais ‘verdadeiros’. Diante da Turquia e da Eslovénia, na primeira linha com o trio de jogadores que Portugal montou ao ter a bola houve João Palhinha, um médio menos refinado a tocar e passar a bola, a baixar para entre os centrais ou aproximar-se deles.

Ser ele e o seu perfil de jogador a fazê-lo representa um certo contrassenso face a uma consequência da “tendência” que “não é nova, mas sai reforçada neste Europeu”, evoca Tomás da Cunha, de as equipas assentarem numa estrutura com três atrás na organização ofensiva, lembrando a forma como “o futebol se transformou nos últimos 10 ou 15 anos”.

BSR Agency

Uma razão para a ‘banalização’ do 3-2-5

O analista da Tribuna Expresso rastreia o “duelo constante” que está em voga hoje em dia em qualquer jogo: “entre a saída curta, ou elaborada” de uma equipa e “a tentativa de pressão alta” da outra “para forçar erros e, a partir daí, instalar-se no meio-campo ofensivo e criar ataques mais perigosos de forma imediata”. Esta luta omnipresente vem dos tempos em que o futebol se deparou com o “apogeu” da saída a jogar curta no Barcelona de Pep Guardiola, quando muitos treinadores se inspiraram a seguir a sua deixa e outros mais identificaram a necessidade de arranjar forma de condicionar isso, no campo.

Nesse sentido, “já não é tão comum” ver na posição de médio defensivo ou 6 um jogador de perfil construtor. Porque as equipas deixaram de procurar e dar primazia a “médios baixinhos com técnica e pensamento” cujas qualidades sejam quase só essas, explica Tomás da Cunha. “Muitas equipas usam um 6 de sentido posicional e de recuperação de bola, que prepara a equipa para a transição defensiva e não participa necessariamente na construção”. Como tal, quando Portugal joga com dois centrais e sem a bola tem, à partida, uma linha defensiva de quatro elementos, serem as características de um jogador como João Palhinha a serem puxadas para trás no 3-2-5 não é propriamente comum no futebol atual.

O mais usual, por estes dias, será esse jogador ficar mais avançado no meio-campo (de novo o exemplo da Alemanha, que o faz com Robert Andrich, o mais demolidor dos seus centrocampistas), à espera dos momentos da perda de bola. Ou ver as equipas a começarem com três defesas centrais declarados, seja lá quais forem as origens dos jogadores a compor esses três lugares.

“Quer os centrais ou um dos laterais (ou até os dois, em muitas equipas), ganham peso na construção. E daí a tal estrutura em que um terceiro elemento faz parte da construção inicial e não um jogador participativo que baixa, por exemplo, para encaixar entre os centrais”, resume Tomás da Cunha. Caso os desdobramentos sejam esses, tal “acaba por criar assimetria, muitas vezes, na pressão adversária, porque um dos laterais projeta-se e outro fica mais baixo para participar na construção”.

Seja com um médio a baixar, um lateral a ficar atrás e o outro subir, a construção a partir de três jogadores é quase um padrão que quando se começou a banalizar, há quatro ou cinco anos, demonstrou a sua eficácia em colocar jogadores entre os setores adversários, a espreitarem espaços nas costas e entre linhas para criar linhas de passe possíveis em quase todo o lado. Aos poucos, para contrariarem isto, os treinadores foram abandonando uma tendência mais antiga, vinda dos tempos em que o AC Milan de Arrigo Sacchi, nos finais da década de 80, ensinou o mundo da bola a ver a luz dos benefícios de defender à zona.

Maja Hitij - UEFA

A consequência defensiva que trouxe ao futebol

Em vez de organizarem a sua equipa de modo a precaver os espaços, ajustando a sua maneira de defender consoante onde está a bola e em que sítio estamos no campo, os técnicos regressaram a hábitos antigos, de quanto o futebol era visto a preto e branco ou na aurora das transmissões a cores.

Pedir aos seus jogadores para marcarem ao homem.

“A marcação individual em campo adversário, na pressão, é para ficar claramente, acaba por condicionar muito a construção adversária e, generalizando, é mais fácil ganhar duelos com outro tipo de fisicalidade”, avalia Tomás da Cunha, ao fazer o retrato partilhado pelo treinador de primeira divisão ouvido pela Tribuna Expresso, que prefere não ser identificado, mas esmiuça a consequência de atacar com 3-2-5 e respectivas variantes para ter muita gente a explorar espaços entre linhas abateu no futebol: “Vê-se muita marcação mista. Especialmente quando pressionam alto, no primeiro momento de pressão e às vezes no segundo, é muito individual no meio-campo precisamente por isso, porque se tens tanta gente a ir buscar o teu espaço entre linhas, se vais buscar o teu adversário ao homem e marcá-lo, deixa de haver esse espaço porque estás a marcar o indivíduo, não o espaço.”

O objetivo é claro: tentar fazer desaparecer as vantagens do 3-2-5.

Na bola pontapeada no jogo de clubes, a Atalanta de Gian Piero Gasperini é o expoente máximo de uma equipa que tem os jogadores a marcar individualmente quase a campo inteiro (chegou-lhe para vencer a última edição da Liga Europa). Neste Europeu, viu-se a Suíça, por exemplo, a assumir as referências individuais nos oitavos de final, contra a Itália.

É nos clubes, também, que este bailarico de responder ao que outros treinadores fazem e dança de estarem constantemente a tentarem contrapor as ideias dos outros, está a brotar outra solução - o que chamam de futebol funcional, ou relacional. O Fluminense treinado por Fernando Diniz fazia-o no Brasil, a Hungria orientada por Marco Rossi tentou aplicá-lo neste Euro 2024. Em suma, trata-se de deixar jogadores explorarem zonas do campo onde, numa visão mais ortodoxa e estanque do futebol, jamais seria suposto lá colocarem os pés - quando um lateral esquerdo, no momento ofensivo, vai participar numa jogada ao corredor direito. Grimaldo faz isto no Bayer Leverkusen de Xabi Alonso, onde a ordem para criar confusão e baralhar a bússola do adversário é uma constante.

Se um adversário marcar estes furibundos sem poiso fixo aparente individualmente e os perseguir, isso vai fomentar a desorganização.

Alexander Scheuber - UEFA

E se o adversário não pressionar?

Começar do 3-2-5 no momento da organização ofensiva assenta, em parte, no pressuposto que o adversário nos vai pressionar com dois jogadores. Criada está, então, a superioridade nos números. Mas, caso a outra equipa apenas dedique um futebolista ao momento inicial de pressão, surge a dúvida legítima de questionar se é necessário manter três jogadores para contornar a presença de apenas um.

Retornado ao caso prático de Portugal, se a seleção formar a sua linha de três com bola ao fazer recuar um médio ou manter um lateral para projetar outro, o problema resolve-se com um estalar de dedos: esse jogador, seja João Palhinha ou Nuno Mendes, lateral esquerdo que Roberto Martínez aprecia ter mais ao centro na linha defensiva, pode avançar no campo. Caso haja uma linha ‘original’ de três defesas centrais, a solução mascara-se mais como um imbróglio.

Porque aí a questão é de um treinador dar preferência à segurança de ter sempre três jogadores atrás da linha da bola - assumindo o 3-2-5 na construção - para precaver a equipa para as alturas em que vai perder a posse. Ter três jogadores atrás, na primeira linha, com dois médios por diante e a espreitarem nas costas da pressão inicial do adversário, confere uma almofada de cautela para quando for preciso reagir à perda de bola. Ou então, indo à Alemanha de novo, abraça-se o risco sem pudores: a seleção anfitriã do Europeu desenhada por Julian Nagelsmann deixa apenas um médio (Andrich) uns metros à frente do trio de jogadores que forma na organização defensiva, puxando o outro (Kroos) para essa linha e ficando com o restante (Gündongan) mais à frente, perto dos atacantes.

Apesar de ser uma tendência, não está livre de ter os seus problemas consoante as variantes que cada treinador dá a esta estrutura que está na moda ver no futebol.