Olhando para uma qualquer biografia de Harry Kane na sua língua materna, é impressionante a quantidade de runners-ups que vemos. Runner-up é a expressão anglo-saxónica para alguém que esteve próximo do primeiro lugar, quase tocou a glória, mas apenas ficou em segundo. Runner-up na Taça da Liga inglesa, duas vezes. Runner-up na Premier League de 2016/17, runner-up na Liga dos Campeões de 2018/19. Runner-up na Supertaça alemã de 2023. Runner-up no Europeu de 2020. O segundo lugar como sina, como maldição, de um jogador que ainda procura tocar na prata de um troféu coletivo pela primeira vez, aos 30 anos.
É uma maldição que parece acompanhar o homem que é um dos mais prolíficos avançados mundiais. Um número 9 tornado playmaker, um verdadeiro jogador de equipa. Se Harry Kane foi, nos últimos anos, a principal cara do esconjuro a que o Tottenham se viu vetado - o último título dos londrinos é uma Taça da Liga em 2008, ainda antes da chegada do rapaz de Chingford - este ano a sina de quem nada ganhou revestiu-se de contornos quase esotéricos, passíveis do menos crente passar a acreditar no sobrenatural. Que las hay las hay.
Depois de anos e anos a marcar golos em barda pelo Tottenham (foi três vezes o melhor marcador da liga inglesa e tornou-se o segundo maior goleador da história da Premier League), mas sem nada ganhar, Harry Kane aceitou uma milionária transferência para o Bayern Munique no final da última época. A equipa alemã tinha então acabado de conquistar o seu 11.º campeonato alemão seguido, da forma mais inacreditável possível, beneficiando de uma escorregadela do Borussia Dortmund na última jornada, como se os títulos estivessem, por uma qualquer ordem celestial, todos destinados ao clube bávaro.
Até que chegou Harry Kane.
Como de costume, Harry Kane marcou golos que se fartou na sua primeira época na Allianz Arena, teve aliás a sua mais produtiva época de sempre, com 44 golos marcados em 45 jogos, 36 dos quais em 32 jogos na Bundesliga. E o Bayern Munique, pela primeira vez desde 2012, não ganhou qualquer troféu. É como se Harry Kane a eles fosse alérgico, contaminando tudo à volta com a sua humanidade.
“Por muito que isto seja fantástico, eu quero ganhar os maiores títulos coletivos. Não estamos a fazê-lo e é agridoce”, disse em 2021, ainda no Tottenham, depois de ser agraciado com um prémio de melhor jogador do ano no London Football Awards. A maior parte dos jogadores dizem que os troféus por equipas valem muito mais do que os reconhecimentos individuais, mas talvez ninguém o sinta tanto quanto Harry Kane.
Já este ano, na Alemanha, voltou a falar de títulos por equipas (que não vieram), deixando no entanto os sinais de resiliência, perseverança e anti-estrela que lhe são reconhecidos pelos que com ele privam: “Títulos coletivos é o que me falta na carreira até agora, mas como sempre, não vou entrar em pânico e aconteça o que acontecer vou continuar a lutar, continuar a fazer o meu melhor pela equipa”, sublinhou à BBC.
Fast-forward para o Europeu de 2024. A Inglaterra estreia-se este domingo, frente à Sérvia (20h, TVI), e é uma das favoritas à vitória na prova. Mal coloque o pé em campo e o árbitro apite, o avançado vai ultrapassar Ashley Cole, ao tornar-se no futebolista inglês com mais jogos em Mundiais e Europeus (23), ele que já é o maior marcador da seleção dos três leões, com 63 golos em 91 jogos. Se marcar os mesmos quatro golos que marcou no Europeu de 2020, desaloja Alan Shearer no topo da lista de maiores marcadores ingleses em Europeus.
Ao seu lado terá gente como Jude Bellingham, Bukayo Saka ou Phil Foden, que ajudam a colocar Inglaterra num patamar de quase “agora ou nunca” para Kane, ainda que não esteja aqui uma última oportunidade para o avançado que começou por baixo, a forjar a sua mira por empréstimos na League One e no Championship, antes de finalmente se impôr no Tottenham.
Ganhar seria afastar vários demónios, vingar aquele penálti falhado nos quartos de final do último Mundial, frente à seleção de França, que atirou os ingleses, os já então talentosos e crentes ingleses, para fora do torneio. Uma punição injusta para Kane, sobretudo para Kane.
Em 2021, antes do último Europeu, Kane sublinhou ao “Evening Standard” que acabar a carreira sem um grande troféu por Inglaterra seria “um falhanço”. Hoje, com a ascensão de Bellingham e Foden, figuras de proa no Real Madrid e Manchester City, Inglaterra está mais perto da glória do que nunca. Mas a vitória será saborosa sobretudo para Harry Kane.