Crónica de Jogo

Força, foco e fé em Francisco Trincão para derrotar um Arouca em estado laico

Num lance taumatúrgico, Francisco Trincão parecia ter sido escolhido pelos deuses para exibir na Terra o que é bom futebol. Foi dele o 0-3 que fumega àquilo que foi um jogo tranquilo do Sporting no arranque da 5.ª jornada do campeonato. Antes da estreia na Liga dos Campeões, houve um desafio ultrapassado com sucesso em Arouca. Maxi Araújo fez o primeiro jogo com a camisola dos leões

MIGUEL RIOPA

Gyökeres levou a bola em diagonal da esquerda para o meio. À sua frente derraparam uma série de camisolas amarelas, quase que se atropelando umas às outras. Com muito esforço e parte da equipa derramada no chão, o enxame conseguiu aliviar. A multiplicação de defesas resolveu um problema momentâneo, mas não há milagres e um Arouca laico, que perdeu a fé em Cristo e vendeu por seis milhões de euros ao Al Sadd, sabê-lo-á muito bem.

Quando se oferece um brinquedo novo a uma criança, o intuito é desempacotá-lo e proceder ao seu manuseamento. Há quem a tente impedir dizendo que primeiro é preciso estragar o velho antes de começar a usar o novo. O oposto é incentivar a experimentação. Foi preciso Rúben Amorim encontrar um equilíbrio entre as duas filosofias. Poupar, sim. Avizinha-se a estreia na Liga dos Campeões, contra o Lille, e há que minimizar os riscos. Agora, era preciso desembrulhar um onze que fosse um seguro contra todos os riscos de perder pontos em Arouca.

Ousmane Diomande, Hidemasa Morita, Geny Catamo e Eduardo Quaresma saíram do onze em relação ao clássico diante do FC Porto. Também Vladan Kovačević caiu da equipa inicial, mas, no caso, foi uma lesão a afastar o guarda-redes sérvio. Foram mais as mudanças atrás do que à frente. 26 segundos e Matheus Reis viu Jason Remeseiro passar-lhe nas costas e quase complicar o desejo de credibilidade da renovada retaguarda leonina.

Gonçalo Inácio atuou como central do meio, no trio flanqueado por Zeno Debast e Matheus Reis, o que significa abrir uma caixa mágica ao nível da primeira fase de construção. Os fusíveis do Sporting formavam abrilhantadas ligações interiores e exteriores. A aguardar na zona cinzenta, o espaço onde os defesas dividem a responsabilidade da marcação e o atacante tem possibilidade de conseguir encarar a baliza contrária, Pedro Gonçalves controlava os fios da marioneta. A atração que gerava quando recebia a bola aliviava o condicionamento a Nuno Santos, feito por Tiago Esgaio, Loum e Fukui. As subidas do lateral verde, branco e preto eram pretexto para dominar a linha de fundo e cruzar para a área. Geovany Quenda, como ala do lado contrário, cumpriu o requisito do sistema e atacou a zona de finalização. Também o quase internacional mais jovem por Portugal foi bloqueado pela solidariedade arouquense.

O Sporting apresentou um jogo transversal, pendular: tudo o que nascia num lado era aproveitado no outro. Desta vez pela direita, Francisco Trincão forçou a entrada perante Jose Fontán. A bola decidiu-se pelos pés do extremo que a levantou para Pedro Gonçalves como se de um passe de futevólei se tratasse. Nico Mantl foi batido pela primeira vez.

Tudo passou a correr como as ondas quando a maré está a encher, isto é, por cada vez que o Sporting ia, voltava invadindo um pouco mais o território do Arouca. Acumulavam-se então boas oportunidades. Muito porque Gonzalo García, o técnico uruguaio do Arouca, não conseguiu transmitir aos jogadores que o Sporting usa o pseudo-conforto do adversário como fonte de rendimento. O sétimo classificado do último campeonato pensou ter equilibrado o jogo, mas estava só em vias de ser arrombado nas costas da linha defensiva. Gyökeres, numa exibição que estava a ser trapalhona, passou a ter espaço para se experimentar nas corridas de velocidade como o compatriota Mondo Duplantis. Adaptado ao novo contexto, Gonçalo Inácio ignorou Pedro Gonçalves entre linhas e fez um passe longo para Nuno Santos. Loum acabou por fazer um vistoso golo de calcanhar anulado por fora de jogo do ala.

O segundo golo do Sporting merecia ser algo melhor do que um penálti marcado por Gyökeres após mão de Fukui na área. Já com Maxi Araújo em campo – na estreia, atuou como ala, a fechar à esquerda na linha de cinco –, Francisco Trincão foi messiano na forma como, sozinho, furou no corredor central, com a bola e o pé esquerdo em clima de lua de mel, e fez o 0-3 num lance taumatúrgico.

O Arouca esgotou nos primeiros segundos as manifestações de interesse na baliza de Franco Israel. Depois disso, só Alfonso Trezza tentou de forma tímida alcançar algo mais. O Sporting continua invicto e líder isolado do campeonato. Para já, a maré ainda não parou de encher.