Crónica de Jogo

Semear sonhos, por Jéssica Silva

Portugal venceu esta noite, no Estádio do Bessa, a Ucrânia, por 2-0, com dois golos de Jéssica Silva. Foi o último teste antes de a seleção portuguesa seguir viagem para a Nova Zelândia, onde se vai disputar o Campeonato do Mundo entre 20 de julho e 20 de agosto

Victor Sousa (FPF)

Tac.

Tac.

Foi assim, com dois suaves e graciosos toques com a ponta da bota que a feliz da vida Jéssica Silva fez os seus golos contra a Ucrânia, num tão belo Estádio do Bessa e cheio de gente, na última aparição deste grupo de sonhadoras antes de seguirem para o Campeonato do Mundo, lá longe, onde vão olhar nos olhos norte-americanas, neerlandesas e vietnamitas. Antes e depois de carregar no botão “festa”, a avançada driblou, fez cuecas, espalhou felicidade e, senhora dona de todos os dicionários que misturam futebol e arte, jogou de letra a certa altura. O povo, embevecido, reagiu.

Depois da estóica demonstração de resistência contra a Inglaterra, as jogadoras portuguesas tiveram esta noite de mostrar o que podem fazer com a bola. Cedo se percebeu que Portugal era muito melhor do que a Ucrânia, demonstrando sempre mais andamento, fome e coordenação na hora de roubar a bola. Tecnicamente, idem. O desnível parecia assombroso.

O selecionador Francisco Neto, que numa entrevista recente à Tribuna Expresso explicou as virtudes do seu querido losango, testou um 3-4-3 ambicioso (que também era um 3-5-2, dependendo do posicionamento de Andreia Norton). Ana Borges, a antiga extremo que se transformou em lateral, foi a defesa central do lado direito. É mais uma demonstração de inteligência da jogadora, que se adaptou muito bem, embora tenha sido poucas vezes testada. Mas há velocidade e conhecimento para vigiar aventureiras com camisolas diferentes, assim como toque de bola para começar jogadas. É uma opção interessante.

As portuguesas iam-se encontrando com facilidade. Borges, Carole Costa e Ana Seiça atrás. Lúcia Alves, com uma boa e enérgica exibição, e Joana Marchão pelas alas. Dolores Silva, que celebrou o jogo 150.º pela seleção, e Andreia Jacinto lado a lado, dando liberdade à fina, fina e imaginativa, porém nem sempre venenosa Andreia Norton. Depois, Jéssica Silva e Diana Silva na frente, dando muitos sentimentos contraditórios. Há velocidade, movimentos, disponibilidade, generosidade e até golos, mas houve também duas jogadoras que às vezes parece que não se conhecem assim tão bem, que não se descobrem uma à outra, que fazem não poucas vezes os mesmos movimentos, no espaço e no esquecimento.

As portuguesas foram aproveitando os erros da defesa ucraniana, que queria (quase) invariavelmente sair a jogar desde trás. Daryna Bondarchuk e Daryna Apanashchenko pecaram tanto, tanto que Jéssica percebeu que estava ali o ouro. Na primeira vez que aproveitou o erro alheio, também a portuguesa pecou, falhando um golo cantado, não tão bem quanto o hino português por Tony Carreira. Depois, mais do mesmo e com a tal ponta da bota, massacrou a bondade alheia. Um-zero.

O segundo seguiu depois de combinação entre Dolores, Diana Silva e Marchão. A bola sobrou para a avançada do Benfica, Jéssica Silva, que, com uma rotação impecável, superou as marcadoras graças à potência que tem nas pernas. A felicidade na ponta da bota tratou do resto e ditou o fado. Dois-zero.

FPF

Houve muitas coisas boas esta noite, no Bessa. A pressão coordenada, ainda que convém lembrar que o adversário não criou grandes problemas. Mas a mentalidade é importante, e essa forma de estar foi inegociável durante os 90 minutos. Houve dinâmica e coragem para manter a bola nas botas que escutam e falam a língua de Pessoa. As decisões, sobretudo no último terço, não foram as melhores. Os tais movimentos e a tal descoordenação das avançadas ajudaram neste capítulo, bloqueando a fluidez e a chegada a posições de vantagem ou de golo mesmo.

Não houve assim tanto jogo interior, ou seja, no corredor central e entre a teia de defesas rivais, a tal riqueza que o losango de Neto lhe oferecia na sua versão inicial, segundo o próprio nos explicou. Foi raro ver Jacinto – que bom será ter este anjo silencioso numa grande competição, depois de falhar o Euro por lesão – e ainda mais Dolores a avançar por ali. Norton, claro, é a exceção (e que belos pés tem), mas faltou mais energia na decisão e, como mencionado acima, mais veneno.

Depois de uma queda abrupta da qualidade de jogo, os mais de 20 mil adeptos no estádio puderam testemunhar o ressurgimento do entusiasmo. A segunda parte – que recebeu as visitas honrosas de Diana Gomes, Tatiana Pinto, Catarina Amado, Carolina Mendes, Ana Capeta e Telma Encarnação – prometeu o que parecia inevitável, mas o terceiro golo nunca chegou.

Jéssica Silva, num mundo à parte onde os sonhos se convertem numa mera sexta-feira, parecia estar no seu jogo de exibição. Livre como o vento, eliminava adversárias com uma facilidade quase insultuosa. Atrocidade atrás de atrocidade. Tentou combinar com as colegas, não se esqueceu de tentar marcar mais golos. Jogou com uma vontade de jogar invejável. Apesar do profissionalismo cada vez mais cimentado, estes salpicos de amadorismo (ou de verdade) aproximam cada vez mais mulheres, raparigas, homens e rapazes, multidões prontas para abraçar e adorar mais uma equipa. Há uma pureza na coragem de cada gesto. Um drible não é só um drible, é amor ao jogo.

Do outro lado, as dignas ucranianas, que vivem o drama de uma bárbara invasão na sua terra, iam dando luta como podiam. Olga Ovdiychuk e Polina Yanchuk deixavam alguns detalhes interessantes. A guarda-redes Patrícia Morais teve uma noite muito, muito tranquila.

O apito final trouxe o som do carinho dos 20.123 adeptos no Estádio do Bessa, onde se contavam muitos orgulhosos ucranianos. Acabaram-se os testes. Portugal segue na segunda-feira para a Nova Zelândia, o lugar onde os sonhos estão a ser semeados nos jardins com balizas.