Benfica

Há 20 anos parava o coração de Miklos Fehér, um rapaz “simples” mas “extraordinário”, com “um sorriso que conquistava toda a gente”

Foi a 25 de janeiro de 2004 que Miki Fehér partiu depois de um último sorriso, em pleno relvado do Estádio D. Afonso Henriques, em Guimarães. Ricardo Rocha, antigo central do Benfica que estava em campo num dos momentos mais traumáticos da história recente do futebol português, recorda o húngaro “tímido” mas “simpático” que chegou a Portugal aos 19 anos e os dias que se seguiram à sua inesperada morte, de paragem cardíaca

MIGUEL RIOPA

Há dias em que o céu parece que adivinha o que está para vir. Naquela noite fria e chuvosa como poucas em Guimarães, mesmo sendo janeiro, o Benfica lutava. Contra a intempérie, contra um Vitória forte, contra os ruidosos adeptos do clube da casa. O verde já se confundia com castanho da lama, a água saltava a cada tentativa de corrida e a bola mal rolava quando Miklos Fehér, que José Antonio Camacho havia colocado em campo aos 59’ para o lugar de João Pereira, se intrometeu em plena área na refrega por uma bola que foi depois parar aos pés de Fernando Aguiar. O tanque luso-canadiano, com um pequeno toque à ponta de lança - logo ele que era um raçudo médio - marcava o primeiro e único do jogo, já para lá dos 90 minutos.

A vantagem era preciosa em condições tão complicadas. Jorge Jesus, de cabelo substancialmente mais curto, estava no banco do Vitória e gesticula porque ainda dá para ir atrás do empate. Momentos depois do golo encarnado, Fehér impede que Rogério Matias faça um rápido lançamento lateral, coisas comuns quando é preciso acalmar o jogo. Olegário Benquerença, árbitro daquele encontro, vai ao bolso e saca do devido cartão amarelo. Miki sorri, como quem reconhece a malandrice. Foi o “último sorriso de Fehér”, como colocaria o jornal “A Bola” na manchete do dia seguinte, numa primeira página a negro e em que mais nada coube, porque a partir dali tudo o resto deixou de ter importância.

Miki dobrou-se sobre o seu corpo, seria cansaço? Não seria, porque segue-se uma desamparada queda no relvado. O desespero na cara dos jogadores, Miguel ajoelhado em pranto e as mãos na cabeça de um abalado Tiago denunciam o pior. Ricardo Rocha chora no ombro de um adversário, o sérvio Djurdjevic. O óbito seria declarado cerca de uma hora depois, às 23h10, no Hospital Senhora da Oliveira. O coração de Miki Fehér havia parado, sem aviso.

Miki Fehér chegou a Portugal com 1998 e jogou no FC Porto, Salgueiros, SC Braga e Benfica
Sean Gallup

Ricardo Rocha era titular no eixo da defesa desse Benfica, no dia 25 de janeiro de 2004. O jogo, recorda, estava difícil. “O Vitória é uma equipa muito forte em casa, estava a chover muito e nós conseguimos fazer um golo, estávamos ali a aguentar nos últimos minutos”, lembra o central, confidenciando, com a honestidade de quem não espera, nunca, ver um companheiro a perecer em campo, assistir à morte em direto, que chegou a pensar que o avançado húngaro, de apenas 24 anos, estava a atrasar o reatar da partida, que caminhava para um final que pode parecer eterno a quem quer segurar um resultado.

“Quando vi o Fehér a cair pensei: ‘Epá, o Miki está a perder tempo, vamos aproveitar para descansar um pouco.’ E eu até descansei naquele momento, estava a olhar para o chão, só quando vi o [Tomo] Sokota a correr, o Tiago a correr, os dois muito preocupados a chamar a equipa médica do Benfica, aí é que me assustei”, conta-nos o agora comentador, que entre a dureza de recordar uma das piores noites da vida do nosso futebol e a certeza que é necessário honrar aquele rapaz simples e tímido, ganha forças para fazer a segunda, exatamente 20 anos depois da morte de Miklos Fehér.

Naquela noite, Ricardo Rocha ficou pelo seu Norte natal. Ainda chegou a ir ao hospital, tal como todo o plantel, mas já ia no carro com o sogro a regressar a casa quando tentou saber notícias do colega e amigo através de uma familiar enfermeira. “Ela tentou saber junto do hospital a situação, porque eu pedi para saber se as coisas iam melhorar, se ele ia recuperar totalmente”. Havia esperança, mas do outro lado chegaram palavras terríveis. “Soube da notícia a caminho de casa e desatei a chorar ali no carro, foi um momento muito triste quando tive a confirmação que o Miki não tinha conseguido.”

Os traumas coletivos e pessoais

Nascido perto da cidade de Györ, a hora e meia de Budapeste, Miklos Fehér chegou a Portugal em 1998, com 19 anos, para jogar pelo FC Porto. Nas Antas, o espaço no onze era caríssimo, numa equipa em que Mário Jardel, Artur ou Folha mandavam no ataque. Jogou pouco. Seguiram-se dois empréstimos bem sucedidos a Salgueiros e SC Braga. Este último aguçou a cobiça do Benfica. Os dragões tentaram renovar com o avançado, mas este seguiu para a Luz.

Jogadores emocionados na homenagem que juntou milhares no Estádio da Luz
MIGUEL RIOPA

Por lá reencontrou Tiago e Ricardo Rocha, companheiros no Minho. A amizade foi reforçada em Lisboa, onde Fehér morava na zona do Restelo, com a namorada Adrianne. Miklos era “tímido”, uma pessoa “simples”, mas ao mesmo tempo “extraordinária”, diz-nos o antigo central que ainda teve passagens na Premier League por Tottenham e Portsmouth. “Tinha uma certa presença por causa do físico dele. Mas era uma pessoa super simpática, com um sorriso que conquistava toda a gente”, recorda.

As semanas seguintes foram de choque para o plantel encarnado, entre as homenagens no Estádio da Luz, onde acorreram rivais, anónimos, conhecidos, milhares de pessoas num trauma coletivo, e o emotivo funeral em Györ. A camisola 29 seria retirada, nenhum jogador do Benfica a usou ou poderá vir a usar desde aí.

Ver alguém partir diante dos nossos olhos recorda-nos da nossa particular insignificância. Se for um companheiro, pior. Ricardo Rocha recorda que nos dias que se seguiram à morte de Fehér deixou de conseguir dormir. “E depois parecia que a toda a hora sentia taquicardia, estava sempre muito assustado. O médico do Benfica disse que eu não podia continuar assim, que tinha de me acalmar.” Sugeriu ao jogador que fizesse então uma prova de esforço - “ali no Hospital Universitário, com aquela máscara e tudo mais” - para despistar qualquer problema. “Só para ficar mentalmente tranquilo, sem receios de nada. Creio que todos nós, desportistas ou não, na altura ficámos assim: à mínima coisa que sentíssemos ficávamos com medo”, reflete, antes de desabafar: “Parece que foi ontem”. As memórias, essas, estão “tão frescas e tão reais” como há 20 anos, diz quem, muitas vezes, quando está mais sozinho, se recorda daquele momento “delicado e trágico”, que fica “para sempre guardado” em quem estava no D. Afonso Henriques.

Plantel encarnado no funeral, em Gyor
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Uma primeira autópsia ao corpo do jogador seria inconclusiva, mas exames complementares provaram a existência de uma malformação cardíaca, cardiomiopatia hipertrófica, que nunca havia sido detetada nos inúmeros testes que os futebolistas são obrigados a fazer a cada ano.

Naquele ano, o Benfica quebraria uma série de oito anos sem ganhar qualquer título, vencendo a Taça de Portugal. O desejo de dedicar um troféu a Miklos Fehér e também a Bruno Baião, capitão dos juniores dos encarnados que meses depois do húngaro também morreu de paragem cardíaca, era tema de conversa recorrente no plantel. “Tudo o que nós falávamos era que o que conseguíssemos conquistar nessa época seria em memória deles”, explica Ricardo Rocha. No ano seguinte, já com Giovanni Trapattoni, o Benfica voltaria a ser campeão nacional.

E foi a Györ entregar o troféu junto à campa de Miklos Fehér.