Há dias em que o céu parece que adivinha o que está para vir. Naquela noite fria e chuvosa como poucas em Guimarães, mesmo sendo janeiro, o Benfica lutava. Contra a intempérie, contra um Vitória forte, contra os ruidosos adeptos do clube da casa. O verde já se confundia com castanho da lama, a água saltava a cada tentativa de corrida e a bola mal rolava quando Miklos Fehér, que José Antonio Camacho havia colocado em campo aos 59’ para o lugar de João Pereira, se intrometeu em plena área na refrega por uma bola que foi depois parar aos pés de Fernando Aguiar. O tanque luso-canadiano, com um pequeno toque à ponta de lança - logo ele que era um raçudo médio - marcava o primeiro e único do jogo, já para lá dos 90 minutos.
A vantagem era preciosa em condições tão complicadas. Jorge Jesus, de cabelo substancialmente mais curto, estava no banco do Vitória e gesticula porque ainda dá para ir atrás do empate. Momentos depois do golo encarnado, Fehér impede que Rogério Matias faça um rápido lançamento lateral, coisas comuns quando é preciso acalmar o jogo. Olegário Benquerença, árbitro daquele encontro, vai ao bolso e saca do devido cartão amarelo. Miki sorri, como quem reconhece a malandrice. Foi o “último sorriso de Fehér”, como colocaria o jornal “A Bola” na manchete do dia seguinte, numa primeira página a negro e em que mais nada coube, porque a partir dali tudo o resto deixou de ter importância.
Miki dobrou-se sobre o seu corpo, seria cansaço? Não seria, porque segue-se uma desamparada queda no relvado. O desespero na cara dos jogadores, Miguel ajoelhado em pranto e as mãos na cabeça de um abalado Tiago denunciam o pior. Ricardo Rocha chora no ombro de um adversário, o sérvio Djurdjevic. O óbito seria declarado cerca de uma hora depois, às 23h10, no Hospital Senhora da Oliveira. O coração de Miki Fehér havia parado, sem aviso.
Ricardo Rocha era titular no eixo da defesa desse Benfica, no dia 25 de janeiro de 2004. O jogo, recorda, estava difícil. “O Vitória é uma equipa muito forte em casa, estava a chover muito e nós conseguimos fazer um golo, estávamos ali a aguentar nos últimos minutos”, lembra o central, confidenciando, com a honestidade de quem não espera, nunca, ver um companheiro a perecer em campo, assistir à morte em direto, que chegou a pensar que o avançado húngaro, de apenas 24 anos, estava a atrasar o reatar da partida, que caminhava para um final que pode parecer eterno a quem quer segurar um resultado.
“Quando vi o Fehér a cair pensei: ‘Epá, o Miki está a perder tempo, vamos aproveitar para descansar um pouco.’ E eu até descansei naquele momento, estava a olhar para o chão, só quando vi o [Tomo] Sokota a correr, o Tiago a correr, os dois muito preocupados a chamar a equipa médica do Benfica, aí é que me assustei”, conta-nos o agora comentador, que entre a dureza de recordar uma das piores noites da vida do nosso futebol e a certeza que é necessário honrar aquele rapaz simples e tímido, ganha forças para fazer a segunda, exatamente 20 anos depois da morte de Miklos Fehér.
Naquela noite, Ricardo Rocha ficou pelo seu Norte natal. Ainda chegou a ir ao hospital, tal como todo o plantel, mas já ia no carro com o sogro a regressar a casa quando tentou saber notícias do colega e amigo através de uma familiar enfermeira. “Ela tentou saber junto do hospital a situação, porque eu pedi para saber se as coisas iam melhorar, se ele ia recuperar totalmente”. Havia esperança, mas do outro lado chegaram palavras terríveis. “Soube da notícia a caminho de casa e desatei a chorar ali no carro, foi um momento muito triste quando tive a confirmação que o Miki não tinha conseguido.”
Os traumas coletivos e pessoais
Nascido perto da cidade de Györ, a hora e meia de Budapeste, Miklos Fehér chegou a Portugal em 1998, com 19 anos, para jogar pelo FC Porto. Nas Antas, o espaço no onze era caríssimo, numa equipa em que Mário Jardel, Artur ou Folha mandavam no ataque. Jogou pouco. Seguiram-se dois empréstimos bem sucedidos a Salgueiros e SC Braga. Este último aguçou a cobiça do Benfica. Os dragões tentaram renovar com o avançado, mas este seguiu para a Luz.
Por lá reencontrou Tiago e Ricardo Rocha, companheiros no Minho. A amizade foi reforçada em Lisboa, onde Fehér morava na zona do Restelo, com a namorada Adrianne. Miklos era “tímido”, uma pessoa “simples”, mas ao mesmo tempo “extraordinária”, diz-nos o antigo central que ainda teve passagens na Premier League por Tottenham e Portsmouth. “Tinha uma certa presença por causa do físico dele. Mas era uma pessoa super simpática, com um sorriso que conquistava toda a gente”, recorda.
As semanas seguintes foram de choque para o plantel encarnado, entre as homenagens no Estádio da Luz, onde acorreram rivais, anónimos, conhecidos, milhares de pessoas num trauma coletivo, e o emotivo funeral em Györ. A camisola 29 seria retirada, nenhum jogador do Benfica a usou ou poderá vir a usar desde aí.
Ver alguém partir diante dos nossos olhos recorda-nos da nossa particular insignificância. Se for um companheiro, pior. Ricardo Rocha recorda que nos dias que se seguiram à morte de Fehér deixou de conseguir dormir. “E depois parecia que a toda a hora sentia taquicardia, estava sempre muito assustado. O médico do Benfica disse que eu não podia continuar assim, que tinha de me acalmar.” Sugeriu ao jogador que fizesse então uma prova de esforço - “ali no Hospital Universitário, com aquela máscara e tudo mais” - para despistar qualquer problema. “Só para ficar mentalmente tranquilo, sem receios de nada. Creio que todos nós, desportistas ou não, na altura ficámos assim: à mínima coisa que sentíssemos ficávamos com medo”, reflete, antes de desabafar: “Parece que foi ontem”. As memórias, essas, estão “tão frescas e tão reais” como há 20 anos, diz quem, muitas vezes, quando está mais sozinho, se recorda daquele momento “delicado e trágico”, que fica “para sempre guardado” em quem estava no D. Afonso Henriques.
Uma primeira autópsia ao corpo do jogador seria inconclusiva, mas exames complementares provaram a existência de uma malformação cardíaca, cardiomiopatia hipertrófica, que nunca havia sido detetada nos inúmeros testes que os futebolistas são obrigados a fazer a cada ano.
Naquele ano, o Benfica quebraria uma série de oito anos sem ganhar qualquer título, vencendo a Taça de Portugal. O desejo de dedicar um troféu a Miklos Fehér e também a Bruno Baião, capitão dos juniores dos encarnados que meses depois do húngaro também morreu de paragem cardíaca, era tema de conversa recorrente no plantel. “Tudo o que nós falávamos era que o que conseguíssemos conquistar nessa época seria em memória deles”, explica Ricardo Rocha. No ano seguinte, já com Giovanni Trapattoni, o Benfica voltaria a ser campeão nacional.
E foi a Györ entregar o troféu junto à campa de Miklos Fehér.